#10 Abas Infinitas - A realidade está derretendo (mas você não precisa)
A pandemia está completando um ano e é impossível não pensar em tudo o que passou desde que tivemos de nos adaptar a esse "novo normal". Não é um exagero dizer que uma grande catástrofe afetou de uma forma única a vida de cada ser vivo da Terra.
Vivemos todos um trauma coletivo em slow motion. Nos adaptamos dia após dia à preocupação pela vida das pessoas que amamos, assistimos assustados aos números crescentes de mortos e às declarações do presidente do Brasil. Perdemos muito da nossa liberdade, aprendemos a viver com medo, criamos novas rotinas e tivemos de desapegar de muitas coisas que tínhamos como sólidas, seguras.
Dependendo da situação de cada um, considere também outros traumas combinados como uma solidão indescritível, um vazio profundo, uma raiva indescritível daqueles que não se importam com a vida dos outros, a precariedade financeira e o peso de continuar vivendo normalmente tendo que entregar o que se espera de um trabalhador, de um parceiro, de um pai/mãe, ou mesmo de uma pessoa.
Um ano depois tudo continua bagunçado e cada vez mais confuso. Os lugares abrem e fecham, as regras muitas vezes não fazem sentido. Os lugares que antes tinham vida, agora estão vazios. As disparidades entre as pessoas nunca ficaram tão claras. É latente o aumento da miséria e da pobreza e é assustador ver o preço das coisas no mercado. Para onde vai o Brasil com o desgoverno que temos?
Como disse Maria Bethânia em sua Live, "eu quero vacina, respeito, verdade e misericórdia". Faltou falar: "impeachment".
O governo Bolsonaro passou de todos os limites pelo menos umas 2.875 vezes. Penso que não quero falar do inominável, mas Bolsonaro desmontou o Brasil, destruiu o que se conquistou com a lei do desarmamento, o código brasileiro de trânsito, a estabilidade da moeda, a inflação, o desemprego, liberou geral tacar fogo na Amazônia e no Pantanal, protegeu seus filhos corruptos, empregou funcionários fantasmas, ameaçou jornalistas e a liberdade de imprensa, plantou desinformação, comprou políticos para ter o controle do Congresso, corrompeu as instituições, ameaçou ministros do Judiciário, mudou comandos da PF e da Petrobrás, ignorou a ciência, não gerenciou uma crise de saúde, não comprou vacinas… A lista é infinita. Quem ainda ignora tudo isso, está no mínimo mal informado.
Ser brasileiro é enfrentar tragédia após tragédia, às vezes até mais de uma por vez, sem nunca sentir segurança de que trata-se apenas de um infortúnio. A tragédia faz parte do modus operandi do país. E enfrentar uma pandemia com um governo que trabalha ativamente para ajudar a bagunçar e desmontar, é ainda mais difícil. Mas precisamos seguir em frente.
Por isso, me apoio em dois pilares para manter a saúde mental: o exercício físico e a produção de alguma coisa nova todo dia. Acordo cedo e não importa o cansaço ou a preguiça, saio de casa. Faço uma caminhada ou corro (gosto de chamar de "corrida"). Colocar o corpo em movimento é ajudar o sistema todo a ficar em movimento.
Já volto bem mais disposta para viver dentro do mundo virtual por horas sem sair de casa. Ver o mundo logo pela manhã me lembra de que sou um ser humano, de que estou viva, e de que vale a pena. Talvez a endorfina liberada pelo exercício seja a responsável por isso também.
Além disso, tento todos os dias criar alguma coisa nova. Geralmente é uma receita. Sou que nem a Heloisa Bacellar, "quando estou triste faço um bolo, quando estou feliz, faço dois".
Antes de dormir, sempre leio um livro de receitas. Isso me ajuda a zerar a mente para poder descansar. Quando acordo, continuo pensando em comida.
Funciona assim: abro a geladeira e vejo que tenho caju… O que me leva a lembrar do Caju Amigo, drink do Bar Balcão, um lugar mágico de São Paulo que espero com todas as forças que sobreviva à pandemia. No fundo do drink, há uma compota de cajú, docinha, mastigável.
Procuro no Google como se faz compota de caju. Vejo que é parecido com geleia: coloca açúcar, água, limão e deixa no fogo baixo… Resolvo testar. Qual a pior coisa que pode acontecer? Não dar certo? Essa possibilidade não existe na cozinha. Você sempre está aprendendo alguma coisa mesmo que a comida queime.
Faço a compota de caju e encho a casa com um cheiro bom. Cozinhar também dá esse prazer, traz um aroma bom para a casa. Logo em seguida lembro que tenho massa folhada no congelador. E se…. eu fizesse um strudel de caju? (é assim que minha cabeça funciona…)
Procuro no Google e não vejo nada parecido. Será que estou sendo pioneira nessa descoberta? Uso o que tenho no armário, adiciono canela, lembro que tenho castanhas do Pará e uso o ralador para deixá-las bem pequenas e fininhas. Fecho a massa, passo um pouco de gema por cima e mais um pouco de açúcar para caramelizar e levo ao forno. Mais um cheiro inesquecível na casa.
Percebe que o prazer de comer um strudel de cajú começou bem antes? Quando lembrei que eu tinha cajú na geladeira... É isso o que digo sobre fazer algo manual. Tentar criar alguma coisa e preencher o espaço vazio do tempo com coisas positivas, coisas boas. Pode ser desenhar, arrumar o armário, escrever, ler um livro… Colocar o sistema para funcionar de um jeito positivo.
De repente já não estou mais falando de trauma coletivo, de sofrimento e morte, e muito menos do Bolsonaro. Estou ocupando meu sistema com uma espécie de obra de arte que estou criando. Imagina se não é muito melhor.
A vida continua aparecendo nas brechas, mostrando sua resiliência em sobreviver. Quando sucumbimos à vontade de ter um lazer ou um respiro (mesmo que de máscara), lembramos da sensação do que foi ser feliz um dia. É nesses pequenos momentos que vemos que as coisas vão voltar, a gente vai voltar a ser feliz, a dar risada com algum amigo, a colaborar com outros seres humanos. Vai ter Carnaval de novo, vai ter show, vai ter balada, vai ter feirinha de coisas inúteis… A gente só precisa passar por isso primeiro.
How to Simplify your Life - School of Life
Esse vídeo da School of Life é bem interessante para quem vive no século XXI rs. Ele parte da premissa de que ninguém questiona o cansaço que um bebê sente depois de visitas, estímulos, luz forte, música alta, pessoas conversando em volta dele. Chega uma hora em que o bebê simplesmente começa a chorar. E todo mundo sabe do que ele precisa, apenas de uma soneca para lidar com todos aqueles estímulos. Mas na vida adulta, parece que nos esquecemos de nossa natureza e agendamos mais compromissos do que conseguimos absorver. Tiramos férias e levamos três livros para ler em uma semana. Não nos permitimos desligar nem um minuto e muito dessa sobrecarga no cérebro é causada pelas notícias e feeds de redes sociais. Vamos entupindo nosso sistema com mais informações do que podemos absorver e não permitimos a nós, a saída do bebê: simplesmente tirar uma soneca, descansar para absorver tudo aquilo. "O que é registrado como ansiedade, não é um fenômeno bizarro, é apenas um apelo enfurecido da mente para não ser continuamente e exaustivamente superestimulada", diz o vídeo narrado pelo filósofo Alain de Botton. Ele dá algumas dicas que poderiam ajudar a "simplificar a vida" [lembrando que esse vídeo foi feito antes da pandemia]. E cita essa frase do Nietzsche, que gostei muito apesar dela ter me deixado um pouco triste:
“Hoje, como sempre, os homens são divididos em dois grupos: escravos e homens livres. Quem não tem dois terços do seu dia para si, é um escravo, seja ele o que for: um estadista, um empresário, um oficial ou um acadêmico".
Como será o escritório do futuro?
Achei bem interessante essa reportagem da New Yorker que tenta responder à pergunta: a pandemia transformou o escritório para sempre? Dependendo do ramo em que você trabalha, já deve ter percebido que as adaptações que tivemos de fazer para trabalhar à distância são mudanças que não vão ser simplesmente esquecidas. Diversas empresas já se preparam para definir qual será o modelo híbrido de trabalho, quantos dias as pessoas deverão ir ao escritório e até como será a disposição dos escritórios. Esqueça os cubículos que por muito tempo foram a solução para ter espaço privativo em um grande salão cheio de gente. As empresas de tecnologia, que até hoje ditavam o que há de mais moderno na organização do trabalho (escritórios confortáveis, comida à vontade, sala para descansar ou jogar videogame…), agora definem pequenos escritórios regionais para que os empregados possam ter um apoio físico e fazer reuniões presenciais, mas já consideram que o trabalho remoto veio para ficar. O próprio Twitter anunciou logo no começo da pandemia que se os funcionários quisessem ficar para sempre remotamente, que podiam. Um outro texto interessante sobre o futuro do trabalho aponta alguns caminhos interessantes. A autora, Anne Helen Petersen, diz em sua newsletter que é uma bobagem pensar em barreiras/limites entre trabalho e vida pessoal. Segundo ela, o que precisa ser definido são espécies de "guard rails", que em português tem o mesmo nome, ou seja, barreiras físicas maiores que impedem que se cruzem limites importantes, mas que o movimento entre casa e trabalho deve existir e ser orgânico, que não dá para ser diferente disso.
Mallu Magalhães e outras músicas para animar o dia
Esses tempos atrás comecei a juntar as músicas que apareciam no Spotify e que me deixavam feliz em uma playlist: To get happy. Não me acho uma grande DJ ou curadora de música, mas pode ser que essa playlist anime você por cinco minutos, e se isso acontecer, já estou feliz. É bem eclética com várias coisas que não combinam entre si, mas cada música contém uma energia para cima, que pode ser que ajude nesse momento bad vibe. Nessa playlist está uma das músicas que mais ouvi recentemente, "Vai e vem" da Mallu Magalhães. Música é energia e grande parte das músicas da Mallu ressoam com a adolescente que eu fui ou com a mulher que me tornei. São doces, poéticas, às vezes surpreendentes. Recomendo ouvir dois cds dela, o álbum que leva seu nome, lançado em 2012, quando ainda ela era novinha e cantava "Tchubaruba", "Dry Freezing Tongue" e "Vanguart" e o álbum Vem, que tem Vai e Vem, além das deliciosas "Linha Verde" e "Navegador".
Sei que cê não gosta nada
Dessa história de vai e vem
Tudo bem, a gente fica mais em casa
De noite você sonha com a vida que você quase tem
Meu bem, quase já é muito bom
Podcast Meu inconsciente coletivo (link)
Não sei dizer bem como defender esse podcast criado pela escritora Tati Bernardi. A cada episódio, ela convida diferentes terapeutas e se consulta publicamente com eles. É como se você entrasse na intimidade de alguém e isso tem um apelo inegável na época em que a privacidade está tão em baixa. É convidativo até sentir um pouco de vergonha alheia pelas coisas que ela expõe ali. Mas ao final, você sempre acaba tirando algo para a própria vida ou sobre o mundo. Tem episódio novo toda sexta-feira e é ótimo para ouvir enquanto lava a louça ou faz uma caminhada.
Discurso Madonna - Mulher do Ano pela Billboard 2016 (link)
Eu nunca tinha visto esse discurso da Madonna e juro que não achei que ele ia me tocar o quanto tocou. Ela sobe ao palco para receber o prêmio de Mulher do Ano na música e faz um discurso que na minha opinião é histórico, relembrando um pouco de sua história e colocando tudo no lugar em relação a o que é realmente ser feminista, mulher e livre. Ela já abre o discurso lançando uma pedrada: "Obrigada por reconhecerem minha capacidade de continuar minha carreira por 34 anos em face do sexismo flagrante, da misoginia e da intimidação e abuso constantes". O discurso é brutalmente real:
"Não existem regras - se você é um menino. Se você é uma garota, você tem que jogar o jogo. Que jogo é esse? Você tem permissão para ser bonita, fofa e sexy. Mas não seja muito esperto. Não tenho uma opinião. Não tenha uma opinião que não esteja de acordo com o status quo, pelo menos. Você tem permissão para ser objetificado por homens e se vestir como uma vagabunda, mas não possua sua vadia. E não compartilhe, repito, não compartilhe suas próprias fantasias sexuais com o mundo."
A transcrição do discurso está aqui.
Até a próxima!