#11 Abas Infinitas - Só existe o agora
Outro dia assisti ao filme Planeta dos Macacos pela primeira vez. O original de 1968. Quando percebi, estava há meia hora com a boca aberta. O filme é impressionantemente bom. O que me levou a parar no canal 666 (Telecine Cult) foi o look dos astronautas, devo admitir. Fiquei observando as mochilas super estruturadas e as calças brancas apertadas que aqueles homens vestiam enquanto exploravam a superfície aparentemente remota daquele planeta.
Percebi que fazia pouco tempo que tinha começado e resolvi embarcar no filme. Afinal, nunca tinha assistido a esse clássico antes. Achei muito bom, excelente, cinco estrelas, mas o que mais me marcou foi uma cena em que os homens discutem planos para o futuro e comentam meio que por cima, casualmente, que eles não têm como voltar, já que a viagem seria mais longa que suas vidas. Um dos astronautas grita, como se para acabar a discussão: "Só existe o agora!"
Aquilo ficou comigo por um tempo. Pensei: é isso. Só existe o agora. O que estamos vivendo hoje é algo que nos empurra para a única certeza possível: só existe o agora. Estamos vivendo um momento de muita incerteza, onde tudo está fora do lugar e pendente de evolução. Não sabemos o que vai acontecer com o mundo, com o Brasil e nem com a gente mesmo.
Como construir alguma coisa a partir disso? Um dos caminhos pode ser firmar o compromisso com o ato de ser feliz todos os dias. Não esperando o que pode vir quando tudo isso passar. E se não passar? Só existe o agora para o astronauta que não vai conseguir voltar ao seu planeta e para a gente vivendo em uma pandemia também.
Talvez você esteja definhando
Recentemente, saiu na Folha de S. Paulo um artigo que dá nome ao mal-estar que muitos de nós estamos sofrendo: o definhamento. É a sensação de estarmos sem alegria e objetivo. "É um sentimento de estagnação e vazio. Parece que você está se arrastando pelos dias, vendo sua vida através de uma janela embaçada. E poderá ser a emoção predominante em 2021", escreve o autor, o psicólogo Adam Grant.
O definhamento seria a ausência de bem-estar, mas não é a depressão ainda, é um estágio anterior. É aquela sensação de estagnação, de não ver saída para os problemas. Você é indiferente à própria indiferença.
Aqui no Brasil, vivemos nossa própria versão do inferno. Não temos previsão para tomar vacina, estamos entregues ao acaso de uma doença que se transmite pelo ar. Ou você fica preso dentro de casa (e mesmo assim nada te garante de que não vá pegar a doença), ou você é o culpado pelo seu infortúnio. A responsabilidade pesa sobre nossos ombros civis enquanto seguimos em desgoverno.
Segundo o autor do artigo, uma das formas de combater o definhamento é criar situações onde você possa mudar o foco do que está acontecendo no mundo. Ele sugere atividades como palavras cruzadas ou assistir a uma série para se concentrar em algo que seja importante para você.
Nós perdemos muito do que tínhamos como certo, muito do que considerávamos como "vida normal". Cada um em sua medida, mas grande parte das nossas fontes de alegria e nutrição emocional se foram. Os parques e clubes estão fechados, as aulas viraram uma cansativa ligação em vídeo que nunca acaba e o trabalho virou uma série esquizofrênica produzida pela Apple.
Eu me lembro de ter lido sobre um tipo de meditação que consiste em sentar e sorrir. O guru balinês Ketut Lyier seria o responsável por inventar essa meditação. "A cara séria afasta a energia boa. Para meditar, você precisa apenas sorrir. Sorria com o rosto, com a mente, e a boa energia vai vir até você e limpar a energia ruim. Sorria com seu fígado". Essa é a meditação. Ficar sentado sorrindo. Dá até para fazer de máscara, enquanto anda na rua (e ninguém vai perceber).
O ato de sorrir já libera uma série de hormônios da felicidade, mesmo que o sorriso seja forçado. São liberados neurotransmissores como dopamina, serotonina e endorfinas. As endorfinas atuam como um analgésico leve, enquanto a serotonina é um antidepressivo. (Ou pelo menos foi o que disse um link que eu li na internet.)
O dia em que fui salva por uma cachoeira
Recentemente me peguei sorrindo naturalmente e foi a coisa mais estranha do mundo. Primeiro porque percebi que fazia tempo que eu não sorria. Foi estranho perceber que meu rosto estava tenso há tanto tempo que quando eu sorri de verdade, foi como se mexessem aquelas engenhocas antigas sem lubrificação, como se abrissem minha boca à força.
O sorriso foi cravado no meu rosto pela força da água gelada de uma cachoeira. Graças ao último feriado prolongado, eu pude viajar e me afastar de tudo o que estava me preocupando tanto. Tirei alguns dias de folga, o que ajudou bastante a criar o ambiente propício para sorrir. Sei que é de mau tom falar que viajou e até que se divertiu, afinal, posso soar descolada da realidade, mas acredite, estou bem colada nela. Tão colada que precisei me desligar um pouco. E foi mágico.
Eu estava querendo evitar entrar na cachoeira, talvez por medo de ficar desconfortável, de sentir frio, de encontrar uma possível cobra ou pisar em alguma pedra pontuda. Esses medos que só quem vive no asfalto e passa mais da metade do seu dia na internet sente. E quando me encontrei com meus sentidos e, principalmente, quando eu enfrentei o medo, meu corpo e minha mente reagiram instantaneamente. Me peguei sorrindo. Me senti poderosa de enfrentar um medo, fiquei alegre e energizada por aquela grande quantidade de água que caía lá de cima de um morro direto para a minha cabeça.
Não pense que estou sendo feliz despretensiosamente por aí, eu gasto bastante tempo sofrendo pelas dores do mundo. Quando eu fiquei de frente para aquela cachoeira, o primeiro pensamento que me veio foi: "me desculpe por estar sendo feliz". Não sei a quem eu me referia, só achei que não tinha esse direito. Tá leve viver em 2021.
Mas voltando ao sorriso, ter vivido momentos de alegria e prazer me lembrou que viver vale a pena, reforçou a ideia de que só existe o agora e também me convocou a tentar ser feliz todos os dias.
É preciso sair de casa para ver a vida. Nem que seja para prestar atenção no tiozinho que foi comprar a tinta de cabelo da esposa, mas pediu o telefone da vendedora que ele já conhecia - em uma conversa cheia de intimidades deliciosas. É preciso sair nem que seja para observar a praça da sua cidade vazia enquanto toca um orelhão, solitário, à espera que alguém o atenda. É preciso sair, nem que seja para ver uma senhora fumando às 8h da manhã enquanto entra em um salão de beleza especialista em unhas. Ou para ouvir: "quer entrar pra dar uma olhadinha, moça", falado bem baixinho pela vendedora de uma loja com a porta entreaberta.
E se não der para sair, que seja encontrar um jeito de ser feliz dentro de casa. Faça um desenho com canetinha, arrume o armário, ligue uma música animada. Cozinhe com carinho, coloque alegria em cada coisa que você faz. A alegria precisa ser praticada todos os dias.
E mantenha em mente a noção de que a vida vai voltar. O futebol que os homens praticam na quadra do bairro, um bar com os amigos, aquele momento do show em que todos se pegam cantando o refrão juntos. Ainda vamos marcar almoços ou jantares que vamos nos arrepender de fazer minutos antes, mas porque não dava para cancelar acabou acontecendo e sendo um dos melhores dias da sua vida. Você ainda vai poder entrar em um avião e revisitar o mar cristalino da Bahia ou embarcar em uma excursão furada com alguém bem chato para depois poder passar anos contando essa história engraçada para seus netos. Ainda tem muita vida pela frente e a gente vai passar por esse baque juntos. Vamos sair mais fortes do outro lado.
É claro que é preciso respeitar o distanciamento, se cuidar, cuidar dos outros. Mas é preciso também ir vivendo nas brechas, sendo feliz no micro, porque se não, vai ficar muito longe para alcançar a distância perdida depois. Por isso, comece a ser feliz hoje, do jeito que dá.
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Alguns conteúdos legais pra dar uma olhada:
Por falar em continuar existindo, procure saber sobre esse curta-metragem que está disponível na Netflix. Ele está concorrendo ao Oscar e tem apenas meia hora. O filme mostra um jovem negro tentando escapar de ser morto por um policial branco. Evite desistir do filme na primeira cena forte que lembra o assassinato de George Floyd. O policial sufoca o jovem enquanto ele diz: "não consigo respirar". Eu quase desisti pela violência da cena, mas ainda bem que segui com o filme, pois é fantástico o jeito que os diretores escolheram para mostrar como o jovem tenta mudar seu destino, repetindo sempre o mesmo "dia da marmota", como se dissesse, "me recuso a morrer".
Em determinado momento dessa série da HBO, John Lurie diz: "É importante se divertir todos os dias". John é um pintor que mora em uma confortável casa numa Ilha Caribenha e passa o dia curtindo a vida e principalmente pintando aquarelas. Ele reflete um pouco sobre a vida, a música e a arte. A própria HBO define a série assim: "é parte tutorial meditativo, parte conversa ao lado de uma fogueira". John conta casos como quando saiu atrás de uma enguia viva para comprar em Nova York para servir de modelo para a capa do disco de sua banda (e a estranheza da história não para por aí) e comenta sobre a mania que os policiais têm de pará-lo na estrada por causa de sua "cara de mau". É interessante vê-lo pintar ao vivo e comentar o efeito que a tinta tem sobre o papel. "É mais legal que assistir à TV, você deveria tentar", ele diz. Me inspirei em John e comprei um estojo de aquarela na papelaria perto de casa. Dá pra ver o primeiro episódio de graça aqui.
Sobre a Escrita - Livro Stephen King
Nos meus dias de folga consegui desconectar um pouco da internet e reler esse livro que já havia me inspirado antes. Stephen King, o gênio do mistério e do suspense, autor que já vendeu mais de 400 milhões de exemplares, dá dicas sobre escrita. Ele conta um pouco sobre sua vida e sobre como virou escritor. Depois ele dá algumas dicas para escrever. Spoiler: é preciso praticar todos os dias, não tem segredo. É bem inspirador para quem luta contra o bloqueio criativo e a resistência que todos os dias nos faz desistir de fazer as coisas que sabemos que devemos fazer. Até Stephen King tem seus dias ruins, mas o que ele faz nesses dias, provavelmente é diferente do que você faz com seus dias ruins: ele continua trabalhando em sua obra. Vale a pena ler. Outro livro legal sobre o mesmo tema é o: Grande Magia - vida criativa sem medo, da Elizabeth Gilbert, autora de Comer, Rezar e Amar. É um livro bem fácil e inspirador para quem tenta produzir alguma coisa. Um trecho desse livro, a favor de praticar sua arte todos os dias:
A vida tem uma regra simples e generosa: você melhorará em tudo aquilo que praticar. Por exemplo, se tivesse passado anos jogando basquete, fazendo massas de confeitaria ou estudando mecânica automotiva todos os dias, a esta altura provavelmente seria craque em arremessos de lance livre, no preparo de tortas ou no conserto de caixa de câmbio.
Os ingredientes essenciais para a criatividade continuam sendo exatamente os mesmos para todo mundo: coragem, encantamento, permissão, persistência e confiança.
Como usar uma faca?
A gente fica anos na escola e ninguém ensina a fazer o imposto de renda muito menos a usar uma faca corretamente. Nesse vídeo do canal de uma das escolas de culinária mais famosas do mundo, Le Cordon Bleu, um chef ensina a usar uma faca de cozinha. A ideia de dobrar os dedos para não correr o risco de cortar a ponta deles é genial e não acredito que demorei tanto tempo para aprender a cuidar dos meus membros.
I Love Dick - série Amazon Prime Video
Essa série é uma daquelas obras que expande o mundo ao mostrar uma mulher fazendo algo diferente do que se esperaria normalmente dela (pelo menos das mulheres que vemos em séries e filmes). Só isso já valeria a pena, ver uma personagem corajosa lidando com a confusão emocional causada pelo seu desejo. Nessa série, conhecemos a históriade Chris Kraut e seu marido Sylvère, um casal de Nova York, ele, escritor que estuda o holocausto, ela, cineasta que teve um filme selecionado para "Veneza" recentemente. Chis vai deixar Sylvère em Marfa, cidade do Texas, nos Estados Unidos, com uma forte cena artística. Ele vai fazer uma residência com o artista que gere o Instituto de Arte da cidade, Dick, vivido por Kevin Bacon. Dick faz o estilo caubói e Chris fica louca por ele de cara, apesar de se sentir afrontada e provocada. Ela não gosta muito da arte dele, nem de sua opinião de que a maioria dos filmes feitos por mulheres é ruim. Ela fica completamente obsessiva por ele, escrevendo cartas e mais cartas revelando tudo o que pensa sobre o amor e o desejo. A existência de Dick chacoalha estruturas que estavam há muito tempo paradas nesse casal. Acompanhamos Chris lidando com seu desejo de forma corajosa e aberta e como ela traz isso para dentro do casamento. Mas é mais do que desejo, trata-se de transformar isso em arte. E acompanhamos outros personagens que também estão tentando encontrar sua própria forma de se expressar. A série é dirigida pela Jill Solloway - diretora da também ótima série Transparent - e baseada no romance de mesmo nome da série, escrito pela Chris Kraut verdadeira - que por sua vez é vivida por Kathryn Hahn.
Inside Job - música do Pearl Jam
O Spotify me lembrou dessa música do Pearl Jam, banda que me representou por tanto tempo e que agora quase não ouço mais. É a vida. Tem uma letra muito boa, de uma pessoa que faz um pacto consigo para acreditar que as coisas vão dar certo, para ser feliz. Nesse clipe, o Mike McCready toca uma guitarras dois braços, invejosos dirão que é a mesma guitarra do Dengue da Xuxa.
How I choose to feel
Is how I am
I will not lose my faith
It's an inside job today
(...)
Life comes from within your heart and desire
Quem tem um amigo tem tudo - Emicida
Uma boa forma para encontrar a alegria é ter um amigo (ou entrar em contato com ele de vez em quando). Essa música foi escrita pelo Emicida em homenagem a seu amigo Wilson das Neves, que faleceu em 2017. A história do álbum AmarElo, e o processo de gravação das músicas está contado no ótimo documentário “AmarElo - É tudo pra ontem”, disponível na Netflix.
Quem tem um amigo tem tudo
Se o poço devorar, ele busca no fundo
É tão dez que junto todo stress é miúdo
É um ponto pra escorar quando foi absurdo
Outra forma de encontrar. a felicidade é cozinhar algo gostoso. Recentemente voltei ao estado de "pãodemia" e experimentei uma receita de Babka de chocolate, sem motivo algum. É uma espécie de pão doce amanteigado, um tipo de brioche com gotas de chocolate. Eu me enganei dizendo que ia fazer a receita só para passar o tempo dentro de casa no sábado, mas a verdade é que não aguentei ver o tempo passar. Assim que comecei a fazê-la fiquei ansiosa e sem paciência e não aguentei esperar 8 horas de geladeira para a massa. Usei o resto dos ovos de páscoa para servir como "gotas de chocolate". Ficou boa, mas fico pensando como poderia ter ficado se eu tivesse efetivamente seguido a receita. Se quiser tentar, pode ser uma boa distração.
E para fechar, um pouco de fofura nesse ano tão difícil. Até a próxima!