#15 Abas Infinitas - Uma aba por vez
A pandemia acelerou os processos digitais e muita gente teve que se mudar de vez para dentro da internet. É fácil ficar capturado pelas notificações incessantes quando o seu único modo de comunicação com os outros é pelo celular. Ele sempre dá um jeito de capturar sua atenção e te tirar do mundo físico.
Com a transferência do trabalho para o modo remoto, precisamos ficar pelo menos oito horas por dia ligados na internet. A realidade é que acabamos ficando muito mais do que isso: estamos online desde que acordamos até a hora de dormir.
Essa aceleração digital trouxe um novo conceito de estar vivo. Você pode estar de "corpo presente" em algum lugar, mas de "mente presente" em outro.
O trabalho remoto dá a impressão que você está mais livre pelo fato de não precisar aparecer fisicamente no trabalho. Seu corpo está aqui. Se você quiser, pode ir ao supermercado às 3 da tarde, mas provavelmente estará usando fones de ouvido com uma reunião acontecendo na sua orelha.
Estamos mais conectados do que nunca e essa multitarefa que a internet exige, com a gente pulando de um site para outro e alternando o mundo físico e o mundo digital promove uma sobrecarga no cérebro.
"A navegação na web exige uma forma particularmente intensa de multitarefas mentais. Além de inundar nossa memória de trabalho com informação, o malabarismo impõe, como denominam os cientistas do cérebro, ‘custos de comutação à nossa cognição’. Toda vez que deslocamos nossa atenção, o nosso cérebro tem que se reorientar novamente, exercendo mais pressão sobre nossos recursos mentais. Muitos estudos demonstraram que a comutação entre apenas duas tarefas pode incrementar substancialmente a nossa carga cognitiva, impedindo o nosso pensamento e aumentando a probabilidade de que passemos por cima ou interpretemos mal informações importantes," aponta Nicholas Carr no livro "The Shallow: What the Internet is Doing to Our Brains" (ainda sem versão em português).
Nós pulamos de um aplicativo para o outro e checamos incessantemente as notificações, pois a interrupção é parte do negócio. A cada alerta, pode vir uma nova informação preciosa e isso atiça a dopamina no cérebro, um neurotransmissor muito importante para o organismo, pois está relacionado com o humor, o prazer e o controle.
‘Quanto mais você faz multitarefas, menos deliberativo você se torna, e menos capaz de pensar e de raciocinar sobre um problema. Você se torna mais propenso a confiar em ideias e soluções convencionais em vez de desafiá-las com linhas originais de pensamento", afirma o neurocientista Jordan Grafman, citado por Carr no livro.
"A técnica temporal e de atenção multitarefa não representa nenhum progresso civilizatório. (...) A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem. Um animal ocupado no exercício da mastigação de sua comida tem de ocupar-se ao mesmo tempo também com outras atividades. Deve cuidar para que, ao comer, ele próprio não acabe comido. Na vida selvagem, o animal está obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades. Por isso, não é capaz de aprofundamento contemplativo - nem no comer nem no copular".
Esse trecho é do livro Sociedade do Cansaço, do filósofo coreano Byung-Chul Han. Ele fala um pouco sobre a "violência neuronal", que é própria do momento em que vivemos, de muita informação e muita pressão por desempenho.
Uma pesquisa feita em 2001 mostrou como somos afetados por trocar de atividade constantemente. Os pesquisadores Joshua Rubinstein, Jeffrey Evans e David Meyer fizeram experiências com jovens adultos que alternavam entre diferentes tarefas, como resolver problemas ou classificar objetos geométricos. A conclusão a que se chegou é que o cérebro não se concentra em mais de uma coisa por vez. Ele faz pequenas e rápidas alternâncias de foco, o que dá a impressão para a pessoa de que ela está mantendo a atenção em várias coisas. Mas isso é uma ilusão. A cada troca de atenção, há um tempo necessário para o cérebro se reconectar com a nova atividade, o que consome energia mental.
É como se estivéssemos nos alimentando à força com muito mais comida do que podemos digerir, obrigando a cabeça a metabolizar tudo, como se fôssemos um grande banco de dados que depois vai tomar decisões complexas a partir de tudo o que foi fornecido. Mas o resultado é o contrário. Não rodamos um HD com terabytes em nossa cabeça. Terminamos o dia com o cérebro parecendo uma geleia, sentindo exaustão mental, incapacidade de atenção, impaciência e irritação.
A transformação em mulher-internet
Meu trabalho passou a ser 100% remoto há quase um ano e meio. Só conheço pessoalmente duas ou três pessoas da equipe que tem mais de 30. Todas as nossas interações são online e, sinceramente, eu preferia não ter precisado conhecer o "happy hour online".
Fui lentamente me transformando em um ciborgue, no meu caso, alguém que precisa da internet grudada em seu corpo para sobreviver ao ar livre. Comprei uma pochete e fones de ouvido sem fio para poder fazer isso.
Passo o dia pulando de uma reunião para a outra, cumprindo uma pontualidade que não existia no mundo físico. Minha existência ficou mais robotizada e gasto boa parte do meu tempo olhando para meu rosto numa tela, alinhando a comunicação e os processos e tentando resolver problemas à distância. No final do expediente, fica difícil explicar onde estive o dia todo. Estou sempre exausta emocionalmente alternando o mundo virtual e o físico.
Outro dia, estava em uma reunião ouvindo as pessoas falarem, quando abri outra aba com meu e-mail pessoal. Vi uma mensagem de segurança avisando que haviam logado com a minha conta do Snapchat na Turquia. Eu nem me lembrava de ainda ter uma conta no Snapchat. Aquela notícia atiçou uma sensação de urgência. "Fui hackeada, preciso fazer alguma coisa", pensei. Baixei o aplicativo que eu nem tinha mais, comecei a tentar encontrar senhas possíveis. Fiquei capturada pelo processo de desativar a minha conta, mas meu cérebro também estava ocupado com a reunião que acontecia na "segunda tela". De repente percebi que não dava para estar em tantos lugares ao mesmo tempo: na sala de casa, na reunião e na Turquia.
Depois do sufoco, conclui que eu estava estressada porque estava operando com muitas abas abertas na minha cabeça. Talvez eu opere com muitas abas há muito tempo, afinal até fiz uma newsletter que se chama Abas Infinitas. Ironias à parte, meu cérebro se acostumou com a velocidade da internet, com seus infinitos caminhos de conteúdo para ser consumido e de locais para se estar presente.
Mas uma hora a conta chega. E minha única solução para esse problema é tentar operar apenas uma aba por vez. É preciso sair um pouco do automático, se olhar lá de cima e perceber quantas coisas você está fazendo ao mesmo tempo. Se for mais de uma, pare, respire, e foque na mais importante.
Algumas coisas legais que vi por aí:
Why are we stuck behind social acceleration? | Hartmut Rosa
O pesquisador alemão Hartmut Rosa estuda a aceleração da sociedade e do tempo e nesse vídeo ele explica bem como tudo isso começou. Segundo ele, o homem aumentou a velocidade das coisas no início do capitalismo, primeiro com as navegações, depois com as ferrovias, e posteriormente com o surgimento do carro e do avião. Mas nada se compara ao que temos hoje, quando quase todas as coisas estão em movimento: pessoas, mercadorias, dinheiro, informação, dados. Tudo se movimenta rapidamente. Ele diz que o próprio ser humano acompanha essa velocidade querendo coisas como fast food, speed dating, power naps, fast reading. Não podemos perder tempo, precisamos estar acelerados como o mundo, sem fazer pausas nem intervalos e principalmente fazendo várias coisas ao mesmo tempo, o famoso multitasking.
"Não é apenas algo que parte do desejo humano de acelerar, é parte da lógica da sociedade moderna em que estamos inseridos, em particular a sociedade capitalista, que só pode se reproduzir através do crescimento constante.
"Nós não podemos manter a ordem social sem o crescimento, sem a aceleração, sem a inovação. É uma necessidade sistêmica, eu chamo de estabilização dinâmica. A sociedade moderna não pode ser estável ao menos que esteja em movimento, aumente sua velocidade, cresça e inove sempre".
Nicholas Carr | What the Internet is Doing to Our Brains
Vale a pena mergulhar um pouco mais no trabalho do Nicholas Carr, que eu citei lá em cima. Ele pesquisa o que a internet está fazendo com nossos cérebros. Segundo ele, os smartphones reúnem interesses instintivos básicos para o ser humano: a vontade de conhecimento e a necessidade de socialização.
"Nós temos profundamente em nossa biologia esse desejo de saber tudo que está acontecendo ao nosso redor e isso é amplificado por outro instinto muito básico, nosso instinto social. São os chamados instintos de sobrevivência pois estão conectados à nossa própria sobrevivência como espécie. Mas pense sobre o que fizemos nos últimos anos, criamos essencialmente, este novo ambiente digital, em que entramos por meio de nossos smartphones, criamos um ambiente ilimitado de informações e então pedimos para esse ambiente enviar informações para nós o tempo todo. Nós temos esse instinto que é muito instinto primitivo de querer saber tudo o que está acontecendo ao nosso redor e então criamos um ambiente que não tem fim para a informação. Começamos a ver muito rapidamente um tipo de comportamento compulsivo, você provavelmente já viu esse tipo de comportamento compulsivo em você mesmo, puxando seu telefone mesmo quando nada está acontecendo e não há nem mesmo qualquer razão particular para fazer isso"
HyperNormalisation - Adam Curtis
Esse documentário é bem perturbador, mas bastante interessante sobre o tempo em que vivemos. Foi lançado em 2016, o que dá um tom nostálgico e até um pouco ingênuo para ele, uma vez que o mundo ficou ainda mais complexo depois da pandemia. Adam Curtis mostra que o mundo está cheio de momentos de histeria dinâmica, mas que tudo se mantém o mesmo depois disso. Ele analisa as mudanças que o mundo passou depois das redes sociais, principalmente com a expansão da internet. O documentário está disponível na íntegra neste link.
O Instagram está padronizando os rostos?
Outro dia participei de uma palestra com a Camila Cintra, autora desse livro, e achei bem interessante sua pesquisa. Segundo ela, os filtros do Instagram e a estética difundida pelas redes sociais estão fazendo as pessoas buscarem um rosto padronizado. Há também um ótimo artigo na revista New Yorker sobre o assunto. Segundo um médico entrevistado, os rostos de Instagram têm elementos em comum: "As maçãs do rosto salientes, o queixo forte e projetado, a plataforma plana sob o queixo que forma um ângulo de noventa graus." Se você pensar que há uma série de procedimentos estéticos chamada de "harmonização facial", muito adotada por artistas, fica claro qual o padrão que as pessoas buscam. São rostos milimetricamente simétricos, lisos, sem defeitos. Assim como os rostos ficam quando as pessoas usam os filtros do Instagram. Na pesquisa desse livro, inclusive, a autora descobriu que muitas pessoas procuram cirurgiões plásticos pedindo para ficarem parecidas com a versão delas com os filtros. Uma das precursoras do “rosto de Instagram” é Kim Kardashian. Se o rosto é o elemento físico mais singular e qualitativo da identidade humana, do que abrimos mão quando aproximamos a face de um modelo estético?
Canal da Paola Carosella - You Tube
Outro dia o pessoal do meu trabalho enviou esse vídeo acima como parte de uma longa discussão para decidir se a sopa é ou não é janta. Eu acho que só existe uma resposta correta (é claro que é!), mas o que eu queria mostrar aqui é esse vídeo de quase 30 minutos, praticamente um longa metragem, com a receita de uma sopa de lentilha. Algo que pode ser bem simples de fazer, mas a Paola Carosella incrementa, traz ervas frescas, bota batata e tomate em lata, ensina pequenos macetes na cozinha. Eu assisti a esse vídeo em umas 5 partes, nunca tendo tempo o suficiente para assisti-lo inteiro, mas era uma espécie de meditação entrar no clima desse vídeo sempre que dava. Parece que todos estão relaxados curtindo uma boa tarde gravando um vídeo enquanto cozinham. Me pareceu uma profissão legal, cozinhar para o You Tube, coloquei na minha lista de sonhos profissionais assim como ter um programa de viagens na TV a cabo. Depois desse vídeo, entrei num loop no canal da Paola, assistindo a dezenas de vídeos como esse em que ela ensina um bolo de chocolate que parece maravilhoso, esse em que ela ensina um tiramisú, esse sobre filé mignon, outro sobre sopa de batata, outro sobre um doce de leite que leva 12 horas para ficar pronto e esse sobre Pavlova, um doce que eu sempre tento fazer e quase nunca acerto. Vale a pena explorar os outros vídeos do canal da Paola Carosella.
O Tito tá sempre com uma câmera na mão filmando os "eventos aleatórios" que acontecem com ele. Ele tem uma edição esperta que torna seus vídeos super leves e viciantes. O Tito criou também um programa chamado Só se fala em outra coisa em que ele comenta notícias estúpidas. Ele tem uns vídeos pro Instagram também bem legais em que ele canta músicas com um microfone minúsculo ou apenas faz piada com sua incapacidade de dizer não. Para conteúdos completamente desnecessários, vale a pena segui-lo.
Hacks - HBO
Eu comecei a assistir a essa série sem muita expectativa e me surpreendi positivamente com ela. É o tipo de entretenimento bobo que você fica dando um jeito de assistir pelo menos 10 minutos no dia. Ela conta a história da comediante fictícia Deborah Vance, famosa veterana da stand-up comedy que está prestes a completar seu show de número 2500 em um cassino em Las Vegas. Seu destino cruza com a jovem Ava, roteirista de comédia que está queimada no mercado depois de um tweet infeliz. Ava é totalmente Gen Z, jovem nativa digital, e acaba minando suas relações por sua falta de maturidade. Mas a série é mais que um confronto de gerações, é também uma discussão sobre o que é considerado o humor e até o espaço que ele dá às mulheres.
A vida riquíssima de Déborah Vance me fez lembrar desse perfil maravilhoso da Mariah Carey, que também mora em uma mansão com muito luxo (óbvio).
Sharon Jones
Sharon Jones foi aclamada como uma das responsáveis pela revitalização da soul music. Ela experimentou o sucesso relativamente tarde na vida, lançou seu primeiro álbum quando tinha 40 anos. Antes disso, cantou em casamentos, trabalhou como carcereira e segurança de carro-forte. "“Diziam que eu era negra demais, gorda demais ou baixa demais. Aos 29, me disseram que estava velha. Mesmo assim, nunca desisti de cantar". A melodia de sua banda caiu no gosto do grande público com um empurrãozinho de Amy Winehouse. Amy gravou seis das 11 canções do CD Back to Black (2006) no estúdio da Sharon Jones, em Nova York, e ainda pegou emprestados os músicos da ótima banda Dap-Kings. Ela morreu em 2016, aos 60 anos, de câncer no pâncreas. Há um documentário sobre seus últimos dias de vida, chamado Miss Sharon Jones, filmado durante seu tratamento. Seus melhores álbuns (na minha opinião) são 100 Days, 100 Nights, I learned the hard way e Give people what they want. Enquanto eu pesquisava bons links sobre ela, achei uma estranha participação no programa Altas Horas com a ótima música Better Things. Mas se quiser conhecer melhor sobre sua energia no palco, dê um play neste link.
Até a próxima!