#18 Abas Infinitas - Vamos ter que reconstruir a sociedade com as próprias mãos
Outro dia me peguei pensando em tudo o que vamos ter que fazer para reconstruir o Brasil. Reconstruir porque tem bastante coisa destruída depois de políticas devastadoras de um governo desastroso e depois de uma pandemia que tirou tudo do lugar, deixou gente desempregada e famílias destruídas pela morte de parentes. E agora mais recentemente adicionando uma pitada a mais de destruição a tudo isso, uma guerra - que também tira tudo do lugar, movimenta os mercados, os preços e chega à nossa vida de um jeito ou de outro.
Mas calma, era para este texto ser otimista. Estamos abraçados com o Bozo até outubro, na verdade até janeiro no mínimo e enquanto isso vamos continuar tendo que conviver com suas políticas inomináveis. Mas o jeito que eu encontrei de viver com isso, de suportar esse período, é tentar entender o que levou milhões de pessoas a votarem nele.
Por um tempo, eu quis punir essas pessoas com meu desprezo, mas evolui para entender que milhões de pessoas devem ter uma razão emocional forte para confiar naquele homem. Excluindo o cenário de que muitas delas foram manipuladas com informações falsas e bombardeadas com a exaltação máxima daquela figura, muitas pessoas votaram nele porque queriam um país melhor.
E é aí que a gente conecta o que vamos fazer para reconstruir o país, usar essa vontade que é de todos (não só dos seus eleitores, mas de todos os brasileiros) a favor de construirmos um país melhor.
Novamente excluindo o que não podemos controlar como: políticos ruins decidindo políticas públicas, uma pandemia e uma guerra, anos de descaso com áreas importantes como saúde e educação - temos uma pequena parcela da realidade que pode mudar com apenas o nosso esforço pessoal.
Sabe aquela máxima: seja a mudança que você quer ser no mundo? É mais ou menos por aí.
Comece agindo por amor
Como é que a gente pode mudar o nosso entorno apenas com nossa vontade? Como disse bell hooks no livro "Tudo sobre o amor", "ser bondosos e gentis nos conecta uns aos outros". A intelectual feminista defende que devemos colocar o amor na frente de tudo e adotá-lo como ética de vida. (Nesse link, tem um bom resumo do livro, mas nada substitui ler essa obra-prima).
Estamos vendo nossa sociedade regredir aos níveis sociais dos anos 80, 90… Pessoas passando fome, comendo lixo na rua, famílias destruídas. Muita gente passando necessidade. Está introjetado no brasileiro a capacidade de olhar sem ver, porque se formos ter empatia com tudo o que está errado, se formos dar esmola para qualquer um que nos pede, vamos sofrer demais e nada garante que alguma coisa vá mudar.
Então, a gente mantém o vidro fechado e faz sinal de negativo com as mãos pra dizer que não temos dinheiro e seguimos em frente. Aumentamos o som do rádio e esquecemos que aquela pessoa deve estar passando pelo pior momento de sua vida. E que talvez eu pudesse ter dado a banana que eu tinha na bolsa, ou 2 reais, ou ainda 10 reais, ou quem sabe 50 reais.
Mas vou dar 50 reais para qualquer um que me pedir na rua? Fala nossa voz interior. "É o governo que tinha que estar fazendo alguma coisa, eu já pago meus impostos!" Falou o tiozinho Bolsonarista que vive dentro de mim. Porque queira ou não, existe um dentro de você. Bolsonaro é a nossa face mais feia, mas ainda assim é o reflexo da nossa sociedade.
Mas às vezes o ato de dar esmola pode mudar a vida de uma pessoa. Dar esmolas faria bem para à sociedade brasileira pois nos conectaria como irmãos e fortaleceria nossa comunidade. Estamos no mesmo barco e se eu puder ajudar uma pessoa, já está valendo.
Um dos pilares do Islamismo é dar esmolas aos pobres. É como o dízimo dos cristãos, mas não passa por intermediários, vai direto a quem precisa.
Mas nós introjetamos esse medo do outro. O que é diferente de mim. Ele vai comprar uma pinga com meu dinheiro, ele vai comprar drogas. Esse outro pode chegar a me assaltar um dia justamente por ninguém ter dado nenhuma esmola para ele se reerguer. A violência é o último estágio do desprezo social e ela está muito mais presente hoje do que há anos atrás e mais dela está a caminho se a gente não recuperar nossa sociedade. Por isso, precisamos começar com o que temos.
"Doar verdadeiramente é uma coisa feliz de se fazer. Experimentamos a felicidade quando concebemos a intenção de dar, no próprio gesto de doar e na recordação do fato de que doamos. Generosidade é uma celebração. Quando damos algo a alguém, nos sentimos conectados a essa pessoa, e nosso compromisso com o caminho da paz e da consciência se aprofunda". Essa é uma citação de Sharon Salzberg no livro da bell hooks.
Nossa doação deve ir além de dar dinheiro. Significa respeitar o próximo como ser humano. Olhar no olho, ouvir, ter empatia. Enquanto tivermos esse apartheid entre quem tem dinheiro e quem não tem, jamais seremos uma sociedade justa. Não adianta eu garantir o meu bem-estar se tá ruim para todo mundo. A gente faz parte do todo e em algum lugar a gente vai se cruzar.
Seja o motorista que você espera quando está atravessando a faixa
Quando estamos à pé, todos os motoristas parecem animais. Quase todos, vai… Eles aceleram agressivamente, não param para o pedestre atravessar na faixa, avançam o sinal vermelho. Tudo parece fora de ordem e completamente violento.
Quando estamos dirigindo, muitas vezes estamos nesse lugar do motorista com pressa. Esse semáforo demora demais para abrir, preciso passar logo, senão vou ter que esperar de novo! Sai da frente, velhinha, espera o carro passar! E assim vamos navegando pela cidade com nosso senso de urgência alterado pela velocidade do carro.
Para termos o país que todos queremos, vamos ter que começar por nós mesmos. Ser gentil com o outro, dizer bom dia e boa tarde, parar de agir de um modo selvagem só porque todos parecem selvagens. Se a gente não mudar essa lógica dentro de nós mesmos, não vamos merecer uma sociedade melhor.
E isso vale para o macro também. Se os políticos estão roubando nosso dinheiro, queimando nosso meio-ambiente, destruindo o que é nosso, eu vou correr atrás do que é meu e pronto. O brasileiro é conhecido por tentar tirar vantagem, por sempre querer "dar um jeitinho" para se beneficiar porque ele sente que não há coletividade, não há todo. Há 212 milhões de UNS. Talvez dê para excluir os índios dessa afirmação, pois até onde eu sei, os índios têm sua própria coletividade, noção de comunidade. Fora eles, pode dizer que o resto tá fadado à desesperança no todo, à individualidade do "salve-se quem puder".
Como não temos essa noção de que estamos construindo um país juntos, só sobra pra gente correr sozinho para se garantir. Trabalho mais para pagar escola, plano de saúde, seguro para o carro, segurança particular para a rua. Porque não posso esperar do governo, o governo está ocupado demais roubando.
Vote certo e enquanto isso faça o certo
É por isso que precisamos realmente pensar nessas eleições de um jeito cuidadoso, realmente se responsabilizar por pesquisar os candidatos que estamos votando. Não é porque alguém mandou eu votar nesse deputado estadual, ou será que devo repassar essa informação que chega pelo Whatsapp se não sei se realmente é confiável. A internet tá na palma da nossa mão, dá um Google vai.
E depois de votar, é literalmente entregar para Deus. Porque a gente passa a ter pouco poder, a não ser o poder de se manifestar, de cobrar os representantes. Mas o trabalho grosso mesmo, de tentar construir a sociedade que a gente quer para a gente, está na nossa própria atitude, todo dia, aqui no micro.
Se a gente fizer a coisa certa, mesmo quando há a chance de tirar um pouco de vantagem, as coisas podem começar a se organizar. Se a gente agir da forma certa mesmo que haja a chance de não pagar algo que deixou de ser cobrado, mesmo que formos ficar sem dinheiro por fazer a coisa certa, talvez as coisas comecem a melhorar em cadeia.
Penso muito nas sociedades escandinavas como um todo, Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia… Como eles conseguiram construir sociedades tão corretas, seguras, justas? Com governos corretos, educação exemplar, sem lixo na rua, violência quase zero…? É claro que esses lugares têm problemas, mas no modo geral, as coisas funcionam bem. E não são seres humanos de raça diferente da nossa.
Precisamos levar em conta que eles têm uns mil anos na nossa frente: a Dinamarca se tornou um reino independente antes do século VIII, a nossa independência foi no século XIX. Somos mais selvagens porque temos menos tempo de educação e de estrutura social. Não temos educação de qualidade nem memória histórica sobre nós mesmos. Mas há um fator importante que é a cultura do país. Os lugares mais desenvolvidos assim o são porque a população segue as regras, acaba fazendo a coisa certa seja porque acredita ou porque é levado pelos outros fazendo a coisa certo (ou ainda o medo de multa).
Me lembro de observar impressionada, com meus olhos latino-americanos, o funcionamento de um trem urbano em Amsterdã (tramway). Havia cobrador, mas seu trabalho era um tédio. Ele estava ali apenas para os turistas, uma vez que os moradores da cidade entravam, passavam o cartão no leitor e se sentavam. Alguns, sentavam direto e eu ficava observando para ver se não iam pagar a passagem. Mas sempre era surpreendida com a falta de malandragem dos holandeses. Em algum momento, todos pagavam a passagem. Não porque havia catracas, porque nem isso tinha. Talvez nem porque tinham medo da multa, uma vez que era raro entrar um fiscal e multar as pessoas. Pagavam porque era o certo a fazer. Me lembro de pensar que o governo tratava os cidadãos como adultos e esperava que eles fizessem a coisa certa. E impressionantemente dava certo.
Ignore o mal - Aula prática vs Aula teórica
E mais uma dica para sobreviver nesse Brasil de 2022. A Anitta deu uma aula teórica recentemente sobre a estratégia do Bolsonaro ganhar as redes sociais se aproveitando até das críticas a ele. Ele não se importa com nada, nenhuma regra, nenhuma ética. Segundo ela, o melhor jeito é ignorar que ele existe para não dar audiência. Logo depois, a Zélia Duncan deu a aula prática, sem querer. Ela postou um desabafo sem citar aquele senhor, e mesmo assim ele se aproveitou para "lacrar" em cima.
Portanto, para acabar esse tratado superficial sobre a situação do mundo e do Brasil, se eu tocar uma pessoa com esse texto e fizer ela agir com o coração, a tentar ser "o brasileiro que esperamos dos outros", já valeu.
Algumas coisas legais que vi por aí:
Geralmente quando estou nesse mood pensando sobre o Brasil, toca na minha cabeça a música "Fórmula Mágica da Paz", dos Racionais MCs.
"Essa porra é um campo minado/ quantas vezes eu pensei em me jogar daqui/ mas aí… minha área é tudo que tenho, a minha vida é aqui/ eu não consigo sair".
Essa música é uma obra de arte e traz a realidade da violência nas periferias. Foi lançada em 1997 junto com o já clássico disco "Sobrevivendo no Inferno". Eu sempre ouço essa música quando estou precisando de uma injeção de ânimo, e olhando os comentários do vídeo no You Tube, não sou a única afetada positivamente por ela.
Por falar em Mano Brown, ele é responsável também pelo Podcast mais ouvido no Spotify no ano passado, o Mano a Mano. E agora na segunda temporada, está imperdível a conversa que ele teve com o Emicida, cheia de discussões sobre história e negritude no Brasil e a conversa com o Seu Jorge e o diretor de cinema Jefferson De, que eu ouvi em umas quatro partes, porque está bem longa, porém uma conversa riquíssima cheia de dicas de filmes, conversas sobre o Brasil e os desafios de fazer arte aqui.
Um dia na vida - Eduardo Coutinho
Esse documentário do Eduardo Coutinho passou apenas em uma Mostra de Cinema de São Paulo e depois foi proibido de ser exibido por conter direitos autorais das emissoras de TV. Mas outro dia, encontrei um link no You Tube (que pode ser retirado do ar a qualquer momento). Reassisti e me relembrei o que me fez gostar tanto. Sua forma é a mais simples possível: um compilado de imagens de TV como se estivéssemos zapeando um dia inteiro. Começa logo cedo e termina tarde da noite. Eduardo Coutinho compilou essas imagens como parte da pesquisa para um documentário, mas o material ficou tão bom que resolveu soltá-lo desse jeito mesmo. Assistindo esses trechos da TV brasileira podemos tirar várias conclusões sobre como é a nossa sociedade. Seu jeito de assistir TV nunca mais será o mesmo.
Sebastião Salgado - Exposição Amazônia
Essa exposição do Sebastião Salgado está imperdível. É de graça, não tem fila, só precisa mostrar o comprovante de vacinação. É fruto do trabalho de sete anos (2013 a 2019) do fotógrafo que passou longas temporadas acompanhando 12 comunidades indígenas isoladas. Ele mostra a natureza da Amazônia de um jeito inédito e emocionante e captura cenas que nossos olhos nunca poderiam ter visto, como essa acima de quatro mulheres indígenas apoiando-se umas nas outras para descer uma cachoeira. Mais informações no perfil oficial da exposição.
A pediatra - Andréa Del Fuego (link Amazon)
Eu curti muito esse livro, que conta a história de uma pediatra que não tem empatia nenhuma por crianças, até conhecer o filho do seu amante. O jeito que a autora conta essa história faz você querer devorar o livro. E quando isso acontece, você fecha ele dizendo: "valeu a pena”.
Primeiro eu tive que morrer - Lorena Portela (link Amazon)
Outro livro que curti bastante foi esse da Lorena Portela, que eu já tinha visto várias indicações no Instagram. Talvez porque a temática fosse perto demais de casa, eu tenha evitado por um tempo, mas o efeito que o livro teve foi o contrário do que eu achei que ia ter. Explico: o livro é sobre uma publicitária que está prestes a ter um burnout por trabalhar muito em uma agência e então ela resolve tirar uma longa licença e se mudar para Jericoacoara. Eu achava que podia dar gatilho ler sobre alguém estressada, e provavelmente o gatilho seria também querer largar tudo e ir para Jericoacoara. Não digo que isso não tenha acontecido um pouquinho, mas o livro é tão bom que eu não fiquei pensando em mim, só foquei em acompanhar a história da personagem, que se adapta super bem em sua nova rotina, se joga na tentativa de ser leve e encara seu próprio bloqueio de não se permitir ser feliz. Ou sei lá. Talvez eu tenha entendido errado.
Até a próxima!