#19 Abas Infinitas - Viver e deixar viver (o Metaverso)
Outro dia tive minha primeira reunião no "Metaverso". Na verdade, eu não estava lá na sala de reunião com meu avatar virtual, só tinha o Evandro, esse cara aí de cima que trabalha na minha agência e que possui o desejado Oculus Quest 2. Ele está pesquisando o assunto e liderando um grupo de interessados em criar ações para marcas dentro do Metaverso. Na prática, estar presente no Metaverso hoje seria algo como a Heinz fez recentemente nessa campanha, em que criou cantinhos escondidos dentro do game Call of Duty para os jogadores fazerem uma pausa para comer sem sair do game. Ou os shows que os artistas Travis Scott e Ariana Grande fizeram dentro do game Fortnite (e o Emicida será o primeiro brasileiro a fazer o mesmo).
Por mais que eu tenha mil opiniões sobre a "chegada" do Metaverso por causa de uma série de ações da Meta para tornar isso possível - e que foram levemente elaboradas em uma das Abas Infinitas anteriores - não consegui ficar blasé ao acontecimento. A vontade imediata que tive foi de querer estar "do lado de lá", sentada na sala de reuniões ao lado do Evandro.
Talvez porque minha vida profissional virou um grande e duradouro call. Passo o dia conversando com pessoas que não conheço pessoalmente e "alinhando" processos para entregar o trabalho no final do expediente. Eu já me tornei de certa forma um avatar formado por pixels respirando nessa atmosfera virtual. Ver uma outra representação do humano de certa forma abriu a possibilidade de respirar outros ares e sair da formatação "meu rosto numa janelinha".
Eu não conheço o Evandro pessoalmente, na verdade nunca vi sua foto e nem sei seu sobrenome. Entrei de curiosidade nessa reunião. E a primeira forma que esse ser humano se apresentou para mim e para os outros na sala foi com seu avatar virtual. Mas aí é que tá, não é qualquer avatar. Ele tem expressões faciais e corporais. Ele anda pela sala e chacoalha os braços e mexe as sobrancelhas quando quer te convencer de um ponto. É o humano sendo transformado em virtual em tempo real, já que o Oculus "trackeia" todos os seus movimentos e transmite para a tela. Não é tipo aqueles emojis formatados que você cria de si no celular, é um avatar de corpo inteiro que se mexe exatamente como você (com exceção das pernas, ele não tem pernas ainda).
Pude ver a sala de reuniões que Evandro escolheu para o encontro. Ela não tem paredes e quase dá pra sentir a brisa do mar entrando e o sol fraquinho batendo na pele. Bem mais interessante que o mosaico de carinhas que eu assisto o dia inteiro.
Não era a primeira vez que eu via um humano sendo transformado em 3D assim ao vivo. Eu já tinha participado no ano passado de uma reunião em que o gringo se apresentava dessa forma:
E eu já tinha achado demais, aquele boneco tipo "Pixar" falando coisas sérias e fazendo cara de preocupado (ou decepcionado com a duração da ligação).
Como eu tinha falado anteriormente, questiono uma série de coisas sobre o Metaverso. Começa com a consolidação desse trabalho virtual, a falta de contato pessoal (que é tão parte do ser humano), a transformação do social em virtual, e principalmente, muito principalmente mesmo, me preocupo com minha privacidade. Quero ser uma pessoa antes de tudo, sem que uma (ou mais) corporações detenham todos os meus dados, minhas compras, meus pequenos desejos, meus crushes secretos, minhas imperfeições, meus impulsos e vontades. E agora, as minhas expressões faciais, o tamanho da minha sala e tudo o que tenho. E o pior, que use tudo o que sou para me vender coisas, pra me deixar num estado entretida rolando meu feed calminha (mas sempre com vontade de comprinhas online).
Então, não deixo de pensar sobre isso, mas acho bonito também poder querer estar virtualmente em outro ambiente, me apresentando de outro jeito. Eu que já tinha virado "ciborgue" com meu celular grudado no corpo, agora poderia existir de um outro jeito, sem me preocupar se o cabelo tá penteado ou se o pijama tá aparecendo na tela.
E taí uma das coisas mais bonitas de viver e crescer: poder mudar de opinião. Trabalhar imersa na internet te leva a acompanhar o ritmo dela, queira você ou não. Por mais que eu pense às vezes, "nossa quando eu comecei na internet tinha que discar de um telefone", com saudade daquela internet raiz, quase underground. Por mais que eu pense o tempo que demorou até eu ter uma webcam (e a coragem de abri-la) ou mesmo um laptop, e quantos programas eu usei para me conectar com pessoas, o ICQ, o MSN, o Hotmail, o Blogger, o Fotolog, o Flickr, até chegar no Twitter, Facebook, Instagram, e por último os mil apps chineses que surgem todos os dias, sendo o TikTok um fenômeno cultural de massa… Tem horas que a gente tende a ser conservador e dizer: "ah não, isso aí eu não quero fazer" (por exemplo: dancinha do TikTok, i'm opting out). Estou velha o suficiente para escolher como me expresso na internet e de certa forma consigo fugir da tentação de moldar a imagem que tenho de mim mesma a partir das coisas que compartilho. Me saio bem vivendo a vida ao vivo, muitas vezes até consigo viver algo bonito sem tirar foto (veja só), mas isso não significa que preciso fugir da velocidade que as coisas surgem na internet. Eu só preciso me equilibrar pra ficar de pé, já é o suficiente.
E se o mundo tá indo na direção de ao final do expediente de sexta, em vez de ir pro bar, a gente vai vestir um óculos que venda nossos olhos e sentar com nossos colegas em um bar virtual para tomar uma cerveja, então que seja.
Algumas coisas legais para dar uma olhada:
The Mystifying Rise of Child Suicide - Andrew Solomon
O Andrew Solomon escreve tão bem, principalmente sobre assuntos como depressão, que eu li essa matéria despedaçando meu coração com as mãos só pra ver suas palavras sendo unidas de uma forma tão perfeita em um texto. O tema é triste e a princípio seria o tipo de texto que eu nem leria, mas que bom que eu venci a barreira interna e conheci a história do Trevor Matthews e de sua família. Trevor era um garoto que ele conhecia da escola dos filhos e que se suicidou pulando do terraço do prédio onde morava. Solomon escreve uma espécie de memorial para o menino, intercalando com dados que mostram que os comportamentos suicidas infantis são mal diagnosticados e tenta entender como tragédias como a dele e de outras crianças poderiam ter sido evitadas. A conclusão que tirei (sozinha) é que muitas vezes as crianças não têm maturidade ou capacidade de lidar com rejeição, traumas e dificuldades, e que isso fica escondido dentro delas, sem que ninguém perceba à sua volta. É triste, muito triste, mas vale a pena ler.
Coração por que choras? – Dona Ivone Lara
Estou passando por uma perda difícil na família. Minha avó Elaine, de 99 anos, ficou muito doente e partiu e durante esse processo, acompanhando sua evolução, só conseguia ouvir Dona Ivone Lara. Talvez pelo fato de sua obra ser tão poética e lírica, talvez por ela ser uma senhorinha cantando. O samba sempre me interessou porque conseguia juntar uma sonoridade tão alegre e feliz com letras muitas vezes tristes e sofridas. Acho que é o som que mais resume o que é ser brasileiro, tentar olhar beleza e alegria, mesmo diante de uma série de tristezas cotidianas. E essa música marcou essa fase, por mais que doa, não consigo deixar de fazer carinho na dor com uma música tão bonita.
Hoje, quero saber
Coração, por que choras?
Coração, por que sofres?
Tudo na vida tem fim
Esquece toda infelicidade
Te consola com a sorte
Que esse mundo é de tristezas
Surpresas e saudades
Não te deixes dominar pelo coração
Num mundo de fantasia
Tudo é ilusão
Esquecendo o que passou
Tens alívio em tua dor
Deus é bom
Vai consolar-te com outro amor
George Carlin, mestre do stand-up, falando sobre aborto de forma relevante (em 1996!).
Repita comigo, mi-só-gi-no
The Blessed Madonna from São Paulo! (link)
Setzinho bem legal pra lembrar que é legal ser brasileiro. A BBC 6, rádio super cool de músicas onde até o Iggy Pop tem um programa, veio a São Paulo e transmitiu um set de músicas brasileiras feito pela Cláudia Assef. Eu descobri esse link na imperdível newsletter da Lalai Persson, que inclusive em um texto recente conta sua saga como "analfabeta em Berlim". Bem legal ler um texto que não glamouriza morar fora do Brasil e conta a real: é difícil se adaptar totalmente ao ponto de conseguir entender as posições da aula de yoga em outra língua. Neste outro texto, ela conta do seu dia a dia como voluntária para receber refugiados ucranianos na Alemanha.
Não é hora de desanimar
Esse ano, não basta a gente fazer a nossa parte. Apenas votar no Lula ou até anular o voto porque não quer se envolver ou porque não gosta de nenhum dos dois. Não dá pra lavar as mãos.
Vamos ter que enfiar a mão no lodo e tentar salvar o país da destruição total (os últimos 3 anos e meio deram uma amostra bem assombrosa do que é uma "gestão" bolsonarista e também militar.
já deu pra ver que não houve combate à corrupção, pelo contrário, já deu pra ver que ele deixou queimar o Pantanal e a Amazônia, permitiu que os garimpeiros tomassem conta de terras indígenas e matassem uma comunidade inteira. Já deu pra ver que uma sociedade com mais armas nao é uma sociedade mais segura, já deu pra ver que qualquer incompetente no cargo pode trazer de volta a inflação, já deu pra ver que não é legal não poder comprar tudo o que se quer no mercado, já deu pra ver que um país comandado pelos militares não trouxe mais segurança, mais saúde, mais educação, pelo contrário. O Brasil de Bolsonaro é o Brasil de gente morando na rua, de criança pedindo dinheiro no semáforo. Ele boicotou a vacina, nos deixou à Deus dará durante uma pandemia que aterrorizou a todos, bagunçou todo nosso sistema interno mental pegando para si a bandeira nacional. Hoje, ver uma bandeira nacional traz imediatamente à conclusão de que a pessoa apoia esse governo fascista. Temos de retomar os símbolos nacionais e o nosso orgulho de ser brasileiro. Não vamos conseguir construir nada se não metermos a mão na lama.
Então esse ano, não basta fazer a coisa certa. Ou fugir da discussão. Vamos ter que conversar com nossos parentes que ainda apoiam o monstro, vamos ter que gastar saliva e botar energia positiva pra ver se a gente consegue retomar o país para a gente poder voltar a ter esperança no futuro.
E um último recadinho da Toni Morrison pra vocês (mais aqui):
"Este é justamente o momento em que os artistas vão trabalhar. Não há tempo para desespero, não há lugar para autopiedade, não há necessidade de silêncio, não há espaço para medo. Falamos, escrevemos, fazemos linguagem. É assim que as civilizações se curam.
Eu sei que o mundo está machucado e sangrando, e embora seja importante não ignorar sua dor, também é fundamental se recusar a sucumbir à sua malevolência. Assim como o fracasso, o caos contém informações que podem levar ao conhecimento – até mesmo à sabedoria. Como a arte".
Talvez esses links estejam meio tristes, para baixo, mas a arte é assim mesmo, ela expressa o momento em que vivemos. E viver em 2022 tem sido difícil, assustador e um pouco desesperançoso, mas há de passar. Tudo passa.
Até a próxima!