O ano de 2022 está apenas para os fortes, ou talvez seja só comigo. Recentemente perdi meu pai, um dos poucos leitores desta newsletter. Imaginar esse e-mail chegando em sua caixa de entrada e não encontrando ninguém me faz ficar triste. Assim como a ideia de que nunca mais irei combinar de almoçar com ele e tirar uma foto tão emblemática como a de cima. Emblemática porque com o tempo ele também foi envergando à direita, à religião e ao whatsapp, assim como muitos brasileiros.
Algo que nunca aceitei completamente, embora tentasse respeitar. Saber que nunca mais poderei discutir política com ele também me deixa triste. Talvez eu pudesse ter poupado as frases duras contra seu político de estimação e entendido que ele fazia parte de um contexto maior. Mas eu sempre senti que eu não podia me calar quando eu via um absurdo no noticiário, ou quando ele dizia algo que, para mim, estava errado. No fundo eu ainda sentia que poderia mudar sua opinião com minhas palavras.
Mas nossa relação não era pautada por política. Era marcada por um esforço mútuo para podermos conviver mais, comunicar melhor nossos sentimentos.
Meu pai me ensinou várias coisas mesmo sem saber. Mudou muitas vezes de fase e de personalidade, sempre tentando tirar o melhor da vida. Teve a fase "jipeiro" quando me apresentou Visconde de Mauá, ou Maromba para os íntimos. Teve a fase "atirador de arco-e-flecha", quando chegou a ocupar o primeiro lugar no ranking nacional para homens de sua idade. Teve ainda a fase "caçador", ou seria mais correto dizer "atirador", o que justifica as quatro armas no seu inventário.
Tinha manias relacionadas a consumo. Em Paris, me fez ir a várias lojas para comprar um relógio G-Shok cuja bateria carregava com a luz solar e com o movimento do braço. Passou quatro dias mexendo os pulsos sem parar e dando banho de sol no relógio na janela do apartamento.
Amava seus carros e, numa viagem para a praia quando ainda éramos adolescentes, nos fazia limpar os pés o tempo todo para não sujar o tapete com areia. Era de carro que ele me levava todos os dias à escola, sempre cedíssimo. Logo cedo já estava de banho tomado e sempre muito perfumado com seu perfume Polo Verde.
Me acordava às 6 da manhã com a frase: "vamos lá, o Brasil precisa de você!" - o que me ensinou logo cedo a mandar o Brasil pra PQP. Ainda lembro de uma cena em que íamos para a escola em alta velocidade ouvindo Alanis Morissette e eu ia traduzindo a letra para ele aprender inglês. Ele me deu a paixão por Frank Sinatra, a cidade de Franca, a mania por encher o pneu dos carros e a preocupação com películas de celular.
Era viciado em tecnologia e em novidades. Uma das últimas coisas que me disse foi: "vou esperar para comprar o celular de grafeno", frase que demorei para entender, afinal nunca tinha ouvido falar em grafeno (mesmo ficando 24 horas na internet).
Apesar de ter saído da cidade onde eu cresci há exatos 20 anos, nunca deixei de encontrá-lo todas as vezes que voltei "para casa". Lutei para criar uma relação entre adultos, depois que ele e minha mãe se separaram. Nem sempre deu certo. A separação rendeu muita tristeza, rancor e mágoas, para todos os envolvidos.
Tinha o hábito de me ligar raramente e depois de dois minutos de conversa já queria desligar. Sempre começava a conversa com: "tudo bem? a saúde tá bem?" E terminava com: "pode me ligar sempre que quiser, tá?" E eu, muito infantilmente, respondia: "você também, tá?" Seu perfil no whatsapp, aquele lugar onde você pode escrever uma frase, era: "sempre disponível". Eu sempre achei que era um recado para mim. Ele sempre quis que eu o procurasse, mas eu sempre falhava na quantidade. Ele sempre esperava mais do que eu podia dar.
Agora, ele não está mais "disponível".
É difícil lidar com essa ausência permanente, a sensação de que nunca mais farei tantas coisas. Nunca mais ouvirei sua voz ou o abraçarei. Mas tive a oportunidade de me despedir dele em seus últimos dias. Ele não falava em morte, mesmo sabendo que ela já se aproximava. Era seu jeito de lidar com as emoções, se distanciar para ver se elas iam embora.
Eu achava que já tinha escrito textos difíceis, mas nada se compara a escrever o obituário do próprio pai para mandar para o jornal da cidade. Sorte que eles editaram. Essa é mais uma tentativa de por em palavras emoções tão difíceis de digerir. Talvez me afastando delas em um texto, elas vão embora.
Te amo pai. Descanse em paz.
Você estará sempre comigo, principalmente quando olho no espelho, afinal herdei o seu nariz.
10 coisas que valem a pena compartilhar:
1 - Noites de Cabíria - Filme de Federico Fellini
Ainda continuo inebriada pela obra do Fellini e com o objetivo de assistir a tudo o que ele produziu. Este filme é maravilhoso e rendeu o prêmio de Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1958. Cabíria é uma prostituta que só se dá mal, mas que tem uma personalidade absolutamente encantadora. É interpretada pela mulher do Fellini na vida real, Giulietta Masina, que também faz outros papeis em filmes do diretor, como a protagonista de Julieta dos Espíritos (também maravilhoso). O roteiro tem uma reviravolta e termina de forma trágica, mas mesmo assim otimista. Assim como muitas obras de arte maravilhosas inclusive a vida. Pra não dar mais spoilers, melhor assistir mesmo. Disponível no NET NOW (Claro TV).
2 - Apenas um Neném - Gloria Groove e Marina Sena
Seu ritmo é meio Sertanejo dançante meio Pop, com uma letra quase brega, mas impossível não se encantar com essa música. Do álbum Lady Leste da Glória Groove, que continua crescendo como artista. Marina Sena também entrega tudo. Demorei a embarcar em sua obra, mas acabei me entregando à sua voz e sua poesia.
3- Por Supuesto - Marina Sena
Para começar a ouvir Marina Sena, dê um play em Por Supuesto, a mais conhecida de seu álbum "De Primeira" . Esta música me pegou de jeito também, com seu clima sexy e refrão chiclete:
Eu já deitei no seu sorriso
Só você não sabe
Te chamei pro risco
Então fica à vontade
Vivo em tela viva
Tela de cara e coragem
Solta esse seu muro
E põe os pés nessa viagem
E o ótimo trecho:
Meu sonho feliz
Era chegar e já cair no mar
Gosto bastante também de Voltei pra Mim, Temporal, Tamborim.
4 - Kentukis - Samanta Schweblin (livro)
O que aconteceria se fosse permitido às pessoas entrar na casa de desconhecidos e circular livremente por meio de um dispositivo tão adorável quanto um robô de pelúcia? Kentukis são pequenos bonecos que conectam aleatoriamente pessoas ao redor do mundo. Ao construir esse imenso mosaico, o livro investiga a relação das pessoas com a tecnologia – mas também sua solidão, esperança, carência, entrega e maldade. Neste romance original e divertido, Samanta Schweblin, uma das principais vozes da literatura argentina atual, explora o lado inquietante da tecnologia e constrói um poderoso retrato da vida moderna.
5 - Tiny Pricks Project - perfil no Instagram
"Desperate times, creative measures" (algo como "tempos desesperadores, medidas criativas"). É assim que se define o projeto que começou como uma brincadeira (ou poderia chamar de válvula de escape) durante a era Trump entre algumas mulheres que bordam.
Cada frase horrível que o então presidente dos EUA proferia e que chocava a todos virava um bordado, o que gerava certa mudança de significado quando as pessoas se distanciavam do que chocava a todos e passavam para um lindo tecido bordado. É assim que nascem as melhores obras de arte, interpretações de coisas horríveis que acontecem com a gente. Por exemplo, esta frase do Trump bordada: "I too have a nuclear button, but it is a much bigger and more powerful one than his and my button works!" (algo como:"Eu também tenho um botão nuclear, mas é muito maior e mais poderoso que o dele e meu botão funciona!" Olhando em um bordado, a frase parece irreal, infantil, até ridícula. Hoje, os temas se ampliaram, mas continuam com forte inclinação política e a conta de Instagram tem a curadoria de Diana Weymar
6 - O poema Ansiedade de Kell Smith (link)
7 - Esta imagem que veio na newsletter da Anne Helen Petersen
Uma imagem estereoscópica tirada mais ou menos em 1920 chamada 'A nova mulher, dia de lavar.' (Getty Images)
8 - As ilustras de Giselle Dekel
Que me representam tanto que a imagem de cima virou meu papel de parede do computador.
9 - Museu de Zoologia da USP - (para visitar)
Um museu gratuito com centenas de animais empalhados. Não precisa dizer muito mais que isso desse local especial. Se você tiver uma criança para entreter, melhor ainda. Há até réplicas de ossos de dinossauros.
O museu fica no Ipiranga, perto do Museu.
10 - Desenhos arquitetônicos do Danilo Zamboni
Danilo é formado em arquitetura e imagina lugares icônicos de São Paulo por dentro, quase com uma visão raio-x mostrando os lugares cheios de gente e loucuras. Ele tem outros trabalhos com outra pegada, mas esses prints me pegaram de jeito. Acabei comprando o do MASP que está aí em cima, mas tem do CCSP, Sesc 24 de Maio e Sesc Pompéia.
E pra fechar, o lindo pôster "Ilha da Infância", do mesmo artista, que me faz pensar que perdi um pouco da minha infância também.
Mas é preciso continuar fazendo arte.
Até a próxima!
Que texto lindo, Debora. Sinto muito pelo seu pai. Ler sobre seus sentimentos foi um misto de tristeza e diversão – especialmente a parte de mandar o Brasil pra PQP. Sei que já faz um tempo desde que você escreveu, mas espero que você esteja bem. Um abraço!