#5 Abas Infinitas - Em defesa da busca pelo Nada
Sabe aquela sensação de angústia que você não sabe de onde vem? Geralmente vem de algo que você viu na internet.
Se fosse possível capturar todas as imagens, textos e estímulos que a gente recebe em um dia através da internet e quantificar isso em esforço cerebral, ficaríamos chocados. Imagine o cérebro humano tendo de se adaptar à constante troca de abas e janelas, emoções, mensagens ininterruptas no whatsapp - desde que a gente acorda até a hora de dormir. É um pouco esquizofrênico pular da emoção que é ver a foto do chá revelação da sua amiga, para segundos depois ler o desabafo de um colega de trabalho protestando contra o racismo, para alguma besteira homofóbica que o presidente disse, para depois a cotação do dólar que te lembra que você não pode viajar e ainda depois para a alegria da foto do casamento da prima de uma amiga que você nem conhece.
É como se estivéssemos nos alimentando à força com muito mais comida do que podemos digerir, obrigando a cabeça a metabolizar tudo, como se fôssemos um grande banco de dados que depois vai tomar decisões complexas a partir de tudo isso o que foi fornecido.
Mas o resultado é o contrário. Não rodamos um HD com terabytes em nossa cabeça. O cérebro fica parecendo uma geleia. Terminamos o dia sentindo exaustão mental, incapacidade de atenção, impaciência e irritação. Buscar algo na própria memória se tornou um martírio. Tudo, por causa do excesso de internet.
Uma década atrás, Edward O. Wilson, professor de Harvard e renomado pai da sociobiologia, foi questionado se os humanos seriam capazes de resolver as crises que os aguardavam nos próximos 100 anos. Ele disse: "O verdadeiro problema da humanidade é o seguinte: temos emoções paleolíticas, instituições medievais e tecnologia divina”.
Em um artigo recente no The New York Times, o diretor do Center for Humane Technology (algo como "Centro pela Tecnologia Humana") Tristan Harris também usa a mesma comparação: "Nossos cérebros paleolíticos não foram construídos para a consciência onisciente do sofrimento do mundo. Nossos feeds de notícias online agregam toda a dor e crueldade do mundo, arrastando nossos cérebros para uma espécie de desamparo aprendido", escreveu.
"Para criar uma tecnologia humana, precisamos pensar profundamente sobre a natureza humana, e isso significa mais do que apenas falar sobre privacidade. Este é um momento espiritual profundo. Precisamos entender nossos pontos fortes naturais - nossa capacidade de autoconsciência e pensamento crítico, para debate e reflexão fundamentados - bem como nossas fraquezas e vulnerabilidades, e as partes de nós mesmos sobre as quais perdemos o controle", conclui Tristan Harris.
Agora com a quarentena, o celular ficou ainda mais presente em nossas vidas e o cansaço mental também. Muitos de nós depende o tempo todo da internet para poder existir.
Eu já escrevi um pouco sobre o vício em celular e como as redes sociais são feitas para fisgar nossa atenção, mas depois do documentário O Dilema das Redes voltei a pensar no assunto (se você não assistiu, veja.) Esse documentário, que está na Netflix, traz diversos questionamentos sobre o quanto somos manipulados a engajar incessantemente com as mídias sociais e o que isso pode significar para nossa liberdade e para o futuro da democracia.
"Estamos em um enigma de conversas inúteis, quantidades insanas de palavras e imagens. A estupidez nunca é cega ou muda. Portanto, não é um problema fazer as pessoas se expressarem, mas sim fornecer lacunas de solidão e silêncio nas quais elas possam eventualmente encontrar algo a dizer. As forças repressivas não impedem as pessoas de se expressarem, mas sim as forçam a se expressar. Que alívio é não ter nada a dizer, o direito de não dizer nada, porque só então existe a chance de enquadrar o raro, e ainda, mais raro, de encontrar o que vale a pena ser dito".
O filósofo francês Gilles Deleuze escreveu isso em 1985, muito antes das redes sociais. Mas se encaixa perfeitamente no momento em que vivemos. Essa obrigação de participar o tempo todo de uma espécie de competição de diálogo - onde todos falam sozinhos torcendo para que alguém "fisgue" aquela deixa e comece uma conversa - é exaustivo.
No livro "How to do Nothing", a autora Jenny Odell investiga formas de resistir à chamada "Economia da Atenção", que usa nosso interesse natural pelos outros e a busca humana por comunidade para capturar nossa atenção e transformar em lucro para as plataformas de mídias sociais.
"O nada é mais difícil de fazer do que qualquer coisa. Em um mundo onde nosso valor é determinado pela nossa produtividade, muitos de nós vemos todos os nossos minutos capturados, otimizados e apropriados como um recurso financeiro pelas tecnologias que usamos diariamente. Nós submetemos nosso tempo livre para a avaliação numérica e interação com os algoritmos e mantemos nossa marca pessoal. Para alguns, deve haver alguma satisfação em simplificar e divulgar toda a sua experiência como ser vivo. Mas ainda assim, persiste uma certa sensação nervosa de estar se superestimulado e sendo incapaz de sustentar uma linha de pensamento. Embora possa ser difícil de entender antes de desaparecer por trás da cortina de distração, esse sentimento é de fato urgente. Ainda reconhecemos que muito do que dá sentido à vida vem de acidentes, interrupções e encontros fortuitos: o tempo livre que uma visão mecanicista da experiência busca eliminar".
No livro Sociedade do Cansaço, do filósofo coreano Byung-Chul Han, ele fala um pouco sobre a "violência neuronal", que é própria do momento em que vivemos, de muita informação e muita pressão pela desempenho. Coincidentemente, ele também fala sobre o excesso de estímulos, informações e impulsos.
"A técnica temporal e de atenção multitarefa não representa nenhum progresso civilizatório. (... ) A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem. Um animal ocupado no exercício da mastigação de sua comida tem de ocupar-se ao mesmo tempo também com outras atividades. Deve cuidar para que, ao comer, ele próprio não acabe comido. Na vida selvagem, o animal está obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades. Por isso, não é capaz de aprofundamento contemplativo - nem no comer nem no copular".
Ele continua: "A cultura pressupõe um ambiente onde seja possível uma atenção profunda. (...) O tédio profundo constitui o ponto alto do descanso espiritual. Pura inquietação não gera nada de novo". (...) Justamente o oscilante, o inaparente e o fugidio só se abrem a uma atenção profunda, contemplativa. Só o demorar-se contemplativo tem acesso também ao longo fôlego, ao lento. Formas ou estados de duração escapam à hiperatividade".
Friedrich Nietzsche também apontou a necessidade de contemplação para a evolução do ser humano em seu livro "Humano, Demasiado Humano", publicado em 1878, também bem antes das redes sociais. "Por falta de repouso nossa civilização caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram tanto. Assim, pertence às correções necessárias a serem tomadas quanto ao caráter da humanidade fortalecer em grande medida o elemento contemplativo”.
Quem procura mais sobre o vício em redes sociais, sabe que não se trata apenas de um esforço pessoal para "largar o celular". Mas há um caminho que é possível a partir do esforço pessoal: a busca pelos momentos contemplativos, a busca ativa pelo "Nada", portanto. É o que eu tenho buscado.
Às vezes, boicotar a economia da atenção através do controle da nossa própria atenção é uma das poucas ações que temos o poder de tomar. Da próxima vez que for buscar o telefone para ir ao banheiro, lembre-se de que é possível ir ao banheiro sem distrair sua mente.
Da próxima vez que você assistir a um belo pôr do sol, observar o voo dos pássaros, ou ver algo impressionantemente emocionante e bonito, expresse sua gratidão apenas observando. Com todas as células do seu corpo. E nenhum pixel a mais.
Já é um começo.
Algumas sugestões para essa semana:
App Headspace (link)
Já que estamos falando de atenção plena, é irresistível começar falando sobre a meditação de atenção plena (conhecida como mindfulness). Mesmo que seja um pouco incoerente eu indicar um app justamente quando mais falo sobre se desligar do celular, esse aplicativo foi a ferramenta que me ensinou a meditar. Eu sempre buscava “guias para meditar” ou “como meditar””, já que eu não sabia o que devia fazer ou até sentir. É uma prática para se pensar na vida? Chegar a conclusões? Desligar o cérebro? Eu nunca sabia o que esperar, mas precisava de uma técnica para todas essas coisas. Todos os guias que eu via ou vídeos a que assistia, as pessoas só focavam na postura. "Você tem que sentar. As pernas têm que estar assim. A respiração assado". E eu falava, ok, mas e a minha cabeça? O que devo fazer? O segredo é tão simples quanto complexo: você deve focar na respiração. Observando os sinais do seu corpo, você desliga a cabeça. Com a meditação guiada, ele dá um tempo para você ficar em silêncio, mas te lembra de voltar a atenção à meditação quando a sua cabeça estiver pensando na lista de afazeres do dia. Comece com 10 minutos diários. Assim que terminar a meditação, você vai perceber como relaxou se desligando da vida um pouquinho. Existe uma versão paga do app, mas comece pela gratuita. Com o tempo, você vai se sentir seguro para meditar sem o app, e verá que já dispõe das ferramentas necessárias para desligar sua cabeça ou "desligar" o fluxo de pensamento. É o melhor caminho em direção ao "Nada" contemplativo.
Como se desligar das notícias - Vanity Fair (link)
Essa entrevista com a autora do livro "How to breakup with your phone", Catherine Price, traz alguns pensamentos interessantes sobre como podemos mudar a nossa relação com as notícias, principalmente em tempos naturalmente ansiosos como o que vivemos. Dependemos das notícias para saber quando é que a pandemia vai passar, para saber para onde está indo o mundo, mas ficar sabendo absolutamente tudo de errado que está acontecendo não ajuda muito. Ela diz que o primeiro passo é não deixar as notícias em segundo plano - como uma TV ligada o tempo todo ou uma aba de site noticioso aberta ao alcance das mãos. Ela orienta que você escolha uma fonte de informação confiável e siga com ela e também defina um horário para se informar, nunca ao acordar nem antes de dormir. Outra coisa interessante que ela fala é sobre o e-mail, você não precisa deixá-lo aberto o tempo todo, como se precisasse saber imediatamente sobre cada mensagem que chega. Você pode checar algumas vezes ao dia, não necessariamente estar em alerta o tempo todo. E finaliza com uma frase muito boa:
“Quase sentimos que precisamos estar estressados e ansiosos para sermos cidadãos e adultos responsáveis, mas isso é ilógico se você realmente pensar sobre isso, porque se você pudesse escolher, só faria sentido ficar estressado e ansioso com as coisas que podemos realmente controlar".
Tá aí uma verdade.
Luedji Luna - Bom Mesmo É Estar Debaixo D'Água (álbum visual)
Achei muito lindo esse álbum visual da cantora Luedji Luna chamado "Bom Mesmo É Estar Debaixo D'Água". Foi lançado recentemente e o melhor jeito de curtir é deixá-lo rolando e ir curtindo o casamento entre a música e as imagens. Nesta matéria tem um pouco mais sobre o processo do álbum e da história dessa cantora baiana.
"Hoje vou me fingir de morta
Não vou tirar retrato
Não vou lavar o prato
Nem procurar ninguém
Vou dormir sem roupa
Sonhar com a sua boca"
Man-Ifesto - Regras para a vida (link)
Nunca me esqueço dessa lista de 2012 da GQ britânica. Eles chamaram de "Man-ifesto", uma espécie de lista com regras para um homem se dar bem na vida, escrita pelo jornalista Tony Parsons. Ele já começa com uma frase muito boa: "um homem que trai eventualmente é pego. Uma mulher que trai eventualmente se apaixona". Até hoje me lembro de regras que decorei e levei para a vida como: "seu corpo te dirá a hora de procurar um médico. Somente um idiota não escuta o próprio corpo" e "prepare-se para cada tarefa que você enfrentar. Você está muito velho para fazer sua lição de casa no ônibus".
Outras regras muito boas:
Ao voltar da academia, você deve fazer as malas imediatamente para a próxima vez. Porque não acaba. Nunca acaba.
Quando sentir saudades de um antigo amante, lembre-se sempre de que eles não são mais tão gostosos como eram.
O único sucesso que importa é poder viver a vida que você deseja. Isso não significa que nunca haverá fracasso, decepção ou mais trabalho do que você pode suportar. Viver a vida que deseja significa que ainda será visitado regularmente por todos eles. E ainda assim sempre valerá a pena.
Sempre trate seus pais como se fossem amigos íntimos que logo vão se mudar para uma terra distante de onde será impossível retornar. Nunca ache que eles estarão sempre lá, não importa o quão ocupada a vida fique. Você não pode imaginar sua mãe e seu pai morrendo. E então acontece.
E a única regra que eu rejeito:
Todo mundo comete erros estúpidos. Ria deles. Quando somos jovens e novos nos restaurantes, todos pedimos steak tartare e depois ficamos chocados quando um prato de carne crua e sangrenta chega. Mas, como todos os outros erros estúpidos, você só deve pedir steak tartare uma vez.
Professor Polvo - Netflix
Uma outra forma de recuperar a sensação de normalidade é ter contato com a natureza. Não dá para explicar como ela age, só sei que a natureza regula nossos ritmos internos e destaca sutilmente o que é importante e o que pode ser dispensado. Quanto mais você estiver próximo dela, mais vai concluir de que não precisa fazer aquela compra online que está coçando para ser feita, e outras preocupações semelhantes que criamos para nós mesmos. Não sei bem onde tinha lido sobre esse documentário original da Netflix, que narra a amizade entre o mergulhador Craig Foster e um polvo, que mora numa floresta subaquática próximo a Cape Town, na África do Sul. Fiquei curiosa e fui assistir. A primeira impressão é de deslumbramento pelas imagens em altíssima definição, mas o documentário tem valor mesmo é pela história que conta. Com sensibilidade, o filme destrincha a relação que Craig começa a criar com o polvo, acompanhando quase que sem querer, a vida inteira do bicho, capturando momentos importantes e emocionantes. Craig realmente se envolve emocionalmente com o animal e passa a visitá-lo todos os dias, mas mesmo assim não se sente na posição de influenciar no equilíbrio da natureza ao ver um tubarão caçar sua amiga (o polvo é fêmea). O tom é sóbrio, apesar de conter muito afeto.
Queria me enjoar de você
O ano era 2011 e me lembro de ter escutado essa música no repeat por uns bons meses. O que me deixava maravilhada era o clima do clipe, vários amigos, tocando música em uma sala apertada, sorrindo, dando risada, se divertindo, como se fosse um almoço de sábado marcado de última hora. Eu queria fazer parte daquela turma, ter aquela juventude carioca idealizada, a liberdade de fazer algo com a galera depois ir pra outro lugar e terminar o dia comendo um sanduíche no Centro. Nesse momento de quarentena, esse vídeo pode ser gatilho para a saudade da aglomeração dos amigos, ou então pode servir como um lembrete da felicidade que nos aguarda, logo mais, quando tudo isso passar.
Voltando da sua casa ontem
Reparei que eu tinha ficado lá...
E finalizo com esse cartoon da New Yorker, de uma pessoa desesperada em uma biblioteca por um pouco de "tempo de tela".
Até a próxima!
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