Abas Infinitas #1 - Com a realidade está difícil de competir
Quatro meses depois e a quarentena começa a se parecer com a própria vida. De um jeito estranho, a Terra mandou todo mundo pro próprio quarto para pensar no que fez de errado esses anos todos.
É impressionante como o ser humano se adapta a tudo. No caso do Brasil, o "novo normal" é sair de casa e rezar para não pegar o Coronavírus. A gente encarou a doença de um jeito bem brasileiro: mantivemos o comércio aberto, colocamos a máscara no queixo e passamos álcool em gel dando uma "benzidinha" no final, pra dar aquela proteção extra.
Os lugares começam a reabrir em outros países e me lembro como era a vida antes do vírus. Li em algum lugar que o coronavírus testa a capacidade do ser humano de agir coletivamente, por um bem comum. Parece que o diagnóstico não foi muito bom. Pelo menos aqui.
Não dá para prever muita coisa na velocidade em que as coisas chegam e mudam tudo. Não se sabe quando a doença vai parar de matar, se é que vai. Não se sabe quando vem a vacina, se é que vem. Nem se os restaurantes vão sobreviver, os empregos, as escolas.
O coronavírus fez a gente se distanciar um do outro, não podemos mais nos encontrar sem culpa. Nós que nos cumprimentávamos de beijinho agora precisamos aceitar que o melhor que temos é uma sociedade em que as pessoas se cumprimentam com o cotovelo. Ir ao clube, ao cabeleireiro, a um show, a um restaurante, tudo está suspenso. Coisas que eram tão vitais e importantes para a gente desapareceram até segunda ordem.
Concluo que não há futuro. Apenas o presente, sendo pingado tweet após tweet em uma timeline sem fim. Não dá pra saber o que está por vir, só nos resta aguardar e acompanhar tudo em tempo real (tentando segurar a ansiedade).
Na quarentena, minha vida se mudou definitivamente para a internet. Não que eu já não vivesse grudada no meu celular antes, mas agora dependo dele para as necessidades mais básicas. Toda minha vida profissional foi transportada para as videoconferências (que podiam ter sido e-mails) e já nem sei o que é uma amizade sem áudio de whatsapp.
Saio na rua e não vejo ninguém. Tá todo mundo na internet. E eu também. Por isso, esse acabou sendo o momento para organizar as ideias e tentar produzir algo com isso.
Li em algum lugar de que é preciso um balanço entre o que você consome e o que você produz. Quando penso no consumo de internet, é preciso consumir um pouco e produzir um pouco. Se não, você fica louco falando sozinho no Twitter (inclusive recomendo).
O artista Austin Kleon (que também tem uma newsletter legal) citou uma vez a frase do autor Ted Gioia: "o seu output depende do seu input". Ele se referia a escrever, produzir arte, ou seja, que para poder fazer algo era preciso se encher de estímulos, informações e inspirações. Então, essa é uma tentativa de fazer um uso recreativo positivo da internet e de organizar as coisas boas que ela me traz, para dividir com vocês.
A newsletter é o novo blog? Talvez. Há espaço para mais uma? Sempre.
Parafraseando Sophia Loren, que um dia disse algo como: "devo tudo o que sou ao spaghetti", posso dizer que eu devo tudo o que sou à internet. Me lembro da "internet moleque" quando você não precisava ter uma persona online milimetricamente calculada, feita para ser apreciada publicamente. Bastava um username legal para poder compartilhar, para ser ouvido. Muita coisa mudou, mas uma coisa importante permanece: se você quiser ser ouvido, basta falar.
Algumas coisas legais que cruzaram meu caminho recentemente:
O Caminho do Artista - Nina Cast (link)
Andar por aí ouvindo um podcast virou um desses "novos normais" que vão começar a surgir em nossa vida. Podcast parece hipster, mas na verdade ele pode ser o que você quiser. O rádio é um companheiro das pessoas há muito tempo, e agora que nosso telefone está à mão a todo momento, o fone de ouvido virou quase como uma prótese necessária para o mundo de hoje.
Quando a gente ainda saía de casa, esquecer o fone era uma tragédia tanto pessoal quanto profissional. Na quarentena, passei a fazer longas caminhadas para lembrar como é a vida lá fora e o fone de ouvido está sempre comigo.
Uma boa descoberta recente foi essa série de estudos guiados sobre o livro "O Caminho do Artista", de Julia Cameron. Esse livro começou a aparecer muito nos Stories, mas eu não havia tido a oportunidade de ler.
A artista Nina Cast faz uma espécie de "aula guiada" sobre o livro e seus capítulos. Ela fala sobre o desbloqueio criativo e sobre como ter uma vida produtiva, onde você consiga se expressar. Esse assunto sempre me interessa, pois sempre estou encontrando qualquer motivo para não fazer o que eu sei que deveria estar fazendo (artisticamente falando).
Os áudios de Nina Cast pareciam que falavam especificamente comigo, quando ela fala sobre encontrar limites e espaço para produzir alguma arte, para se encontrar consigo mesma e acessar seu interior. Se você quer um pouco de inspiração, indico que ouça.
>> Outro livro legal que me ajudou bastante a entender minha resistência em produzir arte é o ótimo The War of Art, de Steven Pressfield, sem tradução em português infelizmente. Mesmo que tenha largado o inglês no nível B2, vale a pena arriscar esse livro curtinho, pá pum, sobre por que é que você resiste tanto a ir atrás do que quer para a sua vida.
Lives DJ Zé Pedro (@dj.zepedro)
Agora que a Live virou o entretenimento possível, o Dj Zé Pedro inventou um formato super criativo e original de karaokê com qualquer um que queira participar. A pessoa pede para participar da Live no Instagram e ele permite que a pessoa entre ao vivo para cantar o que quiser. Rende momentos emocionantes e engraçados. Além disso, Zé faz transmissões de sets ao vivo para preencher noites vazias (e de vez em quando aparece a Leila Pinheiro tocando, não sei bem por quê). Num sábado à noite recente me peguei emocionada com o set super dançável de Zé. Ele foi de Fernanda Abreu para Odara, coisas que eu nunca escolheria conscientemente mas que alimentaram minha necessidade por arte enquanto estava presa em casa.
As Lives no Instagram aproximaram como nunca os artistas, outro dia o João Bosco estava tocando na sala da casa dele e eu pensei que mesmo que eu nunca possa ir a um show dele (provavelmente não irei), a internet me proporcionou essa cena íntima bonita, por isso, obrigada, internet.
Campanha Apple - The whole working-from-home thing
Só de assistir essa campanha da Apple me deu taquicardia porque capturou a essência do que é trabalhar remotamente em grupo tendo a internet ditando o ritmo das coisas (e sendo o único meio de conversa entre a equipe). Vale a pena ver esse episódio (e os outros já lançados com o mesmo elenco - The Underdogs).
Sister Rosetta Tharpe - "Didn't It Rain?
Foi Dia do Rock um dia desses, e a imagem dessa mulher mais velha com uma guitarra apareceu várias vezes no meu feed até eu finalmente clicar e conhecer a Sister Rosetta Tharpe. Segundo a Wikipedia, ela "foi uma cantora, compositora e guitarrista de música gospel e teve grande popularidade na década de 1940, com uma mistura única de letras gospel e acompanhamento de início de blues e country music. Pioneira da música no século XX, Rosetta foi única ao misturar o gospel com o ritmo que seria futuramente conhecido como rock." Vale a pena ver o vídeo para deixar a imagem e o som dizerem por si só.
High Maintenance - 4a temporada (2020 - HBO)
Você deve assistir a todas as temporadas assim que conseguir uma senha emprestada do HBO Go, mas a quarta temporada é a mais recente e a mais "afinada". É na quarta temporada em que você vê um deficiente auditivo trabalhando profissionalmente em alto nível sem ser estigmatizado por sua deficiência. Nas outras temporadas você também conhece personagens adoráveis e histórias que sempre surpreendem, como a de um superfã de Holly Hunt que vive preso em casa pois tem medo de gente (agorafobia) e pode acompanhar sua tentativa de sair de casa.
High Maintenance começou como uma websérie em 2012 no Vimeo e acabou virando uma série da HBO. Foi criada pelo ex-casal Ben Sinclair e Katja Blichfeld. O fio condutor é um cara que não sabemos o nome, sempre chamado de "O Cara" (The Guy). Ele entrega maconha na casa das pessoas e assim descobrimos personagens especiais em Nova York. O "Cara" é calmo e plácido e, assim como Madre Teresa, nunca deixa alguém sair da sua presença melhor do que o encontrou. Mais aqui
A Montanha Mágica - Thomas Mann (1924)
Como num desafio pessoal em que eu queria testar minha capacidade de concentração que andava igual a de um peixinho dourado por causa do excesso de internet, resolvi escalar essa montanha de quase 800 páginas durante a quarentena. Valeu cada uma, durante quatro meses.
A Montanha Mágica é um clássico sempre citado na lista dos melhores livros da história e prêmio Nobel de Literatura em 1929. Esse romance de Thomas Mann conta a história de Hans Casthorp, um engenheiro naval alemão que vai visitar seu primo no Sanatório Berghof, em Davos, na Suíça. A estadia de Hans acaba se estendendo mês após mês (assim como a quarentena) e ele conhece dezenas de personagens interessantes e importantes para sua jornada. Não vale a pena morrer antes de ler esse livro. É daqueles que você sente saudades quando acaba. Uma boa matéria da Piauí conta como é o sanatório na vida real.
Sala de Roteiro - websérie
A realidade anda tão insólita no Brasil que essa websérie conseguiu brincar com o absurdo do noticiário como se tudo fosse uma obra bem ruim de ficção. É como se fossemos convidados a participar de uma reunião da equipe que escreve a série Brasil. O texto é do Antônio Prata e direção de Fernando Meirelles. Comece pelo episódio 2
Funk da quarentena - Adriana Calcanhoto
O que que faz na quarentena?
Na quarentena, o que que faz?
Senta
Senta
Senta
Senta
Senta a bunda e estuda
Senta a bunda e lê.
Adriana Calcanhoto conseguiu produzir o funk perfeito para o momento em que vivemos.
Entrevista Jia Tolentino
Jia Tolentino é jornalista e escreve para a revista New Yorker. Ela publicou recentemente um livro de ensaios chamado Trick Mirror (disponível em português com o nome: Falso Espelho: Reflexões sobre a autoilusão) em que discorre sobre vários assuntos. Nesta entrevista para a Interview, ela me ganhou quando imaginou como seria o pior cenário para o mundo atual:
"Melted permafrost, dead coral reefs, no more birds, whales engorged with plastic, much of the world’s population living as refugees from one thing or another, permanently disturbed weather, semi-constant natural disaster, cause and effect disrupted for all but the wealthiest—scarcity increasing the rationale for selfishness rather than for cooperation, and also Twitter still exists."
"Geleiras derretidas, recifes de coral mortos, sem mais pássaros, baleias ingurgitadas de plástico, grande parte da população mundial vivendo refugiada de uma coisa ou de outra, clima permanentemente perturbado, desastre natural semi-constante, causa e efeito perturbados para todos, exceto para os mais ricos - a escassez aumentando a lógica do egoísmo e não da cooperação, e também o Twitter ainda existe."
Maya Angelou - When I Think About Myself
Maya Angelou era uma poetisa americana e ela conta a história desse poema, que escreveu para uma motorista de ônibus que vivia rindo. Sua interpretação é emocionante e um dos versos parece um bom fortificante para dias de quarentena:
Too proud to bend
Too poor to break,
I laugh until my stomach ache,
When I think about myself.
(muito orgulhoso para se curvar
Muito pobre para quebrar,
Eu dou risada até meu estômago doer,
Quando eu penso em mim mesma)
E fechamos com Maria Callas cantando Habanera da Ópera Carmen de Georges Bizet, de um jeito tão emocionante e gracioso que faz parecer que é fácil. A realidade está difícil de competir e só uma Ópera poderia ilustrar o momento que estamos vivendo. Eu sempre gostei dessa música, mas não sabia de onde era. Entrou na lista de reprodução do You Tube e eu tive essa boa surpresa. Eu continuo não sabendo muito sobre ela, mas tá na minha lista dar um google em Maria Callas.
Até a próxima!
Débora Nogueira