Abas infinitas #2 - Equilibrando o risco de sair na rua com o bem que isso faz
Ainda estamos em uma pandemia, mas às vezes fica pesado demais lembrar disso. Quinze dias, um mês sem ver a família ou os amigos, vá lá, dá para aguentar, mas meses e meses sem ter previsão, a coisa começa a ficar difícil. A gente começa a encontrar meios de sair do isolamento.
É sábado de manhã e sinto uma urgência em ir a uma loja comprar um presente. Se você pensa no contexto da pandemia, não há necessidade de sair de casa, muito menos para comprar algo supérfluo, mas se você pensa no contexto do isolamento, sair para comprar algo é como voltar a estar vivo no mundo.
Com todos os lugares fechados, o local de relaxamento possível virou a pracinha perto de casa. Ela tem um daqueles jogos de aparelhos de exercício físico de canos amarelos, está bem cuidada e com um olhar mais lúdico aquilo pode virar um parquinho. Comecei a levar meu filho sempre que o desânimo do isolamento batia, mas todas as vezes eu pensava que absolutamente todos os aparelhos poderiam, sim, estar contaminados. Eu pesava o medo que eu estava sentindo com o bem-estar que aqueles poucos minutos ao ar livre geravam em nós dois. De pouco em pouco eu passava álcool em gel nas mãos do meu filho e entregava para Deus.
Viver sem ter liberdade vale a pena? Se formos pensar direito, a gente panica. Então, o que a gente faz? Assume o risco da vida, na medida do possível, pesando a saúde mental e a possível chance de matar a si mesmo e a seus familiares. Tá leve viver em 2020, né?
Com o tempo, desenvolvi um método para pensar se devo ou não fazer tal coisa na rua. Na maioria dos momentos, acabo usando a expressão "no meio de uma pandemia" para pesar a importância do que estou querendo fazer. "Eu preciso fazer isso no meio de uma pandemia?" "eu preciso consertar esse cinto, que está há 5 anos parado, no meio de uma pandemia"? A resposta acaba quase sempre sendo não.
Outro pensamento que me ajuda a balizar minhas ações é me perguntar: "eu poderia pegar uma gripe altamente infecciosa que está circulando na cidade indo a esse lugar ou falando a essa distância com essa pessoa?" A resposta quase sempre é sim.
No meio do caminho, fui aprendendo a viver em cárcere privado, e a tirar prazer no que eu tinha à mão. Eu não posso recorrer aos prazeres que eu tinha na vida pré-pandemia como nadar ou fazer sauna, mas posso sentar no chão do box e fingir que estou em uma cachoeira quentinha. Eu posso não poder pegar um avião e ir a Paris, mas posso lembrar daquela cena à noite andando na rua segura ao lado da igrejinha enquanto o mundo estava disponível para ser conhecido.
As coisas boas da vida não são só as que estão por vir, mas as que vieram antes também. Se recorrermos às nossas lembranças e pensamentos encontraremos situações felizes capazes de preencher uma vida toda.
"Compreendi, então, que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia sem dificuldade passar cem anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se entediar". Essa citação de "O Estrangeiro", de Albert Camus, apareceu no Instagram e ilustrou bem o que eu já estava sentindo sobre a quarentena e não sabia explicar.
Percebi que se eu conseguisse manejar minhas memórias para que elas alimentassem minha vontade de sair por aí e viver, poderia ser bem mais feliz nesse período de reclusão. O que eu fiz de bom poderia preencher a falta do que eu queria viver.
A necessidade de controlar os pensamentos em um ambiente de incerteza também é importante nesse momento de alta ansiedade. Assistir notícias nos informa, mas também nos deixa em pânico. Eu posso escolher o que coloco no meu sistema, que tipo de conteúdo vou assistir. Posso escolher uma série sobre crimes violentos ou uma comédia boba para desligar o cérebro das preocupações do dia.
Em tempos difíceis, a gente avança a curtos passos. Faça o que precisa fazer hoje. Arrume a cama de manhã, lave a louça. Mantenha seu ambiente organizado para a sua cabeça ficar organizada. O amanhã fica para depois.
A revolução vai ser filmada e compartilhada
Se a corda for estourar em algum lugar, eu tenho a impressão que a revolução pode vir pelas mãos dos entregadores de aplicativo. Revolução é uma palavra forte, ainda mais no Brasil, onde tantas foram lideradas pela elite. Digamos que um movimento de pressão para que haja mudanças pode vir pelos motoboys e entregadores de bicicleta.
A tensão é latente porque os salários são baixíssimos e a exploração digna do capitalismo disruptivo. Muitas vezes eles passam o dia todo pedalando ou andando de moto, arriscando a vida no meio da pandemia para fazer entregas e no final ganham quase nada. Os entregadores se organizaram e conseguiram mobilizar uma greve recentemente e diversos protestos contra os aplicativos (tipo ifood e rappi) por melhores condições. Há até o movimento #entregadoresantifascistas. Eu confio neles para fazer o barulho necessário.
Nesta semana aconteceu um caso de racismo filmado contra um entregador, em Valinhos, interior de São Paulo. Quando eu entrei no Twitter, absolutamente todos os posts tinham o vídeo da briga. Quanto mais ele aparecia, mais eu tinha certeza de que o vídeo seria revoltante e por isso tentei fugir, mas uma hora não teve como.
Tive de assistir a um homem daquele tipo escroto que adora humilhar pessoas, dizendo que "aqui não vai acontecer nada" provavelmente em resposta a alguma reclamação que o entregador faria, lembrando já de cara quem é que manda na sociedade. Ele se sente seguro dentro do seu condomínio e de seus privilégios. Depois começa a dizer coisas como "quanto você tira por mês" e o entregador calmo volta a pergunta para ele, "quanto você tira por mês...". O agressor fala com deboche: "2, 3 mil…" e depois começa a dizer: "você tem inveja disso aqui" (mostrando a casa do condomínio) e o entregador diz que não, que ele tem casa, que ele tem uma vida lá fora, e depois o agressor completa "você tem inveja disso aqui" (mostrando a pele do braço).
"Tem uns tipo aí que não dá nem pra comentar", já diria Mano Brown, mas o que me marcou no vídeo foi ver uma violência enorme em palavras e atos, sendo respondida em voz baixa, com calma, sem revidar com violência.
Descobri depois que Matheus Pires, o entregador, é religioso, testemunha de Jeová e ganhou uma moto do Luciano Huck, não sei bem porquê. Ele já está com quase 2 milhões de seguidores no Instagram, mais que muita celebridade por aí. O agressor se chama Mateus Abreu Almeida Prado Couto, de 31 anos, e é contador. Aparentemente Mateus já havia se envolvido em uma briga no condomínio. Nada aconteceu com ele, apesar de racismo ser crime. O advogado de Matheus deu entrevista dizendo que "ele vai ser processado criminalmente e civilmente pelo dano que causou ao nosso cliente". Sigo aguardando a revolução (pelo menos nas redes sociais).
Podcast Christian Dunker
O psicanalista Christian Dunker fala um pouco sobre as mudanças que o mundo passou após o surgimento da pandemia. Neste podcast, ele comenta sobre o que podem significar nossos sonhos conturbados e também fala sobre a ruptura que o coronavírus causou no mundo.
Ele diz que o coronavírus causou uma pausa tão grande no mundo, que qualquer mudança pareceu possível de ser feita depois da pandemia. A pessoa que estava querendo se separar ou mudar de carreira e aquela mudança parecia grande demais, agora tudo parece ser permitido e possível. Uma coisa que foi bem comum durante a pandemia foi a volta de amigos que não se falavam há tempos, inimizades sendo desfeitas e a volta da sensibilidade humana acima de tudo. Se o mundo pode de repente acabar, o que é o mais importante?
Fica a reflexão: o que você estava querendo mudar na sua vida e não conseguia? Se você estava esperando por um sinal, talvez este seja o sinal.
Lendo autores pretos
Há sem dúvida uma tensão racial latente, causada pela pandemia. A ruptura da normalidade evidenciou mudanças que estavam pendentes e demorando demais para acontecerem. Ficou clara a necessidade de debater injustiças históricas e a urgência de se resolver conflitos para termos uma sociedade mais justa.
Nessa sincronicidade das coisas, tenho lido muito sobre racismo e tenho ficada sempre chocada com dados que cruzo por aí. A desigualdade social afasta a população negra das oportunidades de desenvolvimento nas mais diversas instâncias da vida social. E falar de racismo no Brasil é quase um tabu, pois há pouca consciência de classe e raça e também de privilégios.
Quanto mais me informo mais vejo como preciso aprender ainda mais. Começando pelo básico, o uso de termos que são racistas como a própria palavra "negro" (em comparação com o termo "preto"), passando pela importância da representatividade (ter pessoas pretas em cargos, na TV, nos livros, nas bonecas, na política inspira outras pessoas a também buscarem esses lugares), chegando até a conceitos considerados mais profundos para alguém branco, que é o caso do racismo estrutural.
Uma amiga me indicou o livro Memórias da plantação, de Grada Kilomba, e buscando mais sobre ele, encontrei essa análise publicada na revista Quatro Cinco Um. Uma vez confrontado com essas leituras, não é mais possível “desver” a estrutura racista da sociedade, e eu sugiro que você também busque o máximo de informações sobre a experiência dos negros no Brasil.
Um trechinho desse link da Quatro Cinco Um:
"O ponto comum que permeia todos os relatos é a noção de que os negros são “os outros” em sociedades majoritariamente brancas. Diferem não somente no sentido da aparência física e estética, mas principalmente na impossibilidade de pertencer ao território mesmo tendo nascido nele, e de ser sempre visto como ser exótico, desconhecido, inadequado e marginalizado."
Algumas leituras sobre o racismo que me abriram a cabeça e outras que estão na minha lista:
Sobre este último link, um trechinho interessante:
"E em Penalva do Castelo, por exemplo, havia um único aluno negro na plateia, e carrego até hoje seu olhar de espanto ao ver-me entrar na sala, tal qual Sidney Poitier no filme "Ao mestre, com carinho", como um dos poucos momentos em que senti verdadeiro orgulho das escolhas que fiz. Representatividade importa." Kalaf Epalanga
I May Destroy You (trailer)
Indicações de séries são como ondas. De repente, na mesma semana, você é atingido pela mesma indicação por um amigo, pelo jornal, pela revista New Yorker, pelo Facebook, pela TV, e às vezes até por sua avó (dependendo do quanto ela for antenada). Você é obrigado a assisti-la, a não ser que queira ignorar o mundo. Foi o caso de I May Destroy You, de Michaela Coel.
Quando li a sinopse, que é sobre uma garota negra que sofre abuso sexual em um bar, já quis desistir na hora. Há temas demais no mundo e ver cenas chocantes saiu do meu interesse como eu disse lá em cima. Sempre escolho bem o que vou colocar no meu sistema, mas eu precisava ver para dar uma chance.
O que faz essa série interessante, primeiro, é por trazer um tema importante, e mostrar que existem várias formas de abuso sexual, e cada uma delas tem um efeito diferente. Michaela inspira por seu poder, por sua força feminina e combatente, mesmo que muitas vezes pareça que ela não sabe o que está fazendo.
Outro ponto bem importante que achei nessa série foi o fato de vermos um elenco majoritariamente preto, algo que deveria ser muito normalizado, mas que ainda é bastante raro. Novamente reflito que é mais do que urgente normalizar a diversidade (qualquer diversidade) para que possamos tirar o mundo do modo automático "homem-branco-hétero".
Vale a pena ver, essa série tem uma linguagem jovem e rápida, quase que no ritmo da internet. Entender como pensam os jovens é algo essencial para quem quer acompanhar para onde vai o mundo.
Li que ela estava em negociação com a Netflix (que lançou outra série dela, Chewing Gum), mas se negou a abrir mão de seus direitos, como eles queriam. Conseguiu espaço na HBO. Li também que ela editou o roteiro 190 vezes, o que me trouxe um pouco de alento - de saber que obras primas surgem do esforço, não de uma inspiração divina, como a gente às vezes teima em acreditar.
Para assistir, você vai precisar baixar ou pegar aquela senha emprestada do HBO Go.
Morning Show (trailer)
Eu assisti a essa série na quarentena só para aproveitar a Apple TV do meu pai. Já tinha visto que a série tinha ganho alguns prêmios e queria ver se era boa. Geralmente tenho preguiça de séries sobre jornalismo, mas essa é antes de tudo uma série com muito drama. Não digo drama no sentido que você vá chorar assistindo, mas sim que se sentirá extremamente envolvido com os acontecimentos e personagens e vai querer ir até o fim para finalmente entender aqueles seres humanos.
Jennifer Aniston e Steve Carell são âncoras parceiros em um programa matinal de sucesso na TV norte-americana. O programa é de variedades, tem a previsão do tempo, atrações musicais e notícias leves no meio do caminho. Eles dividem a bancada há mais de 15 anos até que Steve é acusado de abuso sexual (naquele momento do #MeToo) e acaba demitido. Acompanhamos os bastidores dessa demissão e de sua substituição. Vou evitar os spoilers, mas conto que há uma Reese Witherspoon envolvida na trama. Recentemente, Jennifer Aniston foi indicada ao Emmy de melhor atriz de drama e a internet comemorou sua versatilidade ao se desgrudar da eterna Rachel de Friends.
Para assistir, você pode fazer um esqueminha legal. A Apple TV dá 7 dias grátis para assistir no computador mesmo (você pode ligá-lo na TV também). Se você for que nem eu e consumir tudo rapidinho, nem paga nada. Se não, após 7 dias você paga R$ 9,90 por mês pelo streaming da Apple. Mais info aqui
Stay Home Club
Essa marca nunca esteve tão conectada ao momento atual. Não que dê para a gente planejar comprar nada pela internet com o dólar custando um milhão de reais, mas vale a pena seguir pra ver coisinhas bonitinhas dessa marca que glamouriza o mau humor e a vontade de simplesmente ficar em casa.
Nesses tempos, ficar em casa não é mais uma opção, mas de certa forma, uma sobrevivência. E é inevitável começar a querer mudar algumas coisas para a casa funcionar melhor, pensar em mudanças de móveis, quadros, ou uma recauchutagem geral. Nas minhas insônias, pinto paredes e imagino móveis para lugares que provavelmente não têm espaço suficiente para eles. Estou sonhando com esse guarda-roupa maravilhoso da Oh que eu Fiz e descobri o serviço de decoração da Buji, que se eu tivesse dinheiro com certeza estaria contratando. E no meu mundo ideal da reforma que provavelmente jamais farei, teria também uma belíssima tapeçaria do Slow Down Studio na parede.
Live das primas
A Live das Primas é formada pela Rê Corrêa (@recorrea) que é roteirista e da Carla Lemos (aka @Modices) e trata sempre de assuntos bem pertinentes para as mulheres. Uma das mais recentes foi sobre a síndrome de impostora das mulheres, essa sensação de insegurança feminina como se alguém fosse descobrir que você não é boa o suficiente em algum momento. Vale a pena acompanhar. Outros episódios legais: Não é TPM, é duplo padrão e Magreza é a nova religião?. O único perigo é você sair mais feminista do que entrou.
Ligue Djá: O Lendário Walter Mercado
Você deve se lembrar de algum momento nos anos 90 enquanto assistia TV e via aparecer a figura extravagante de Walter Mercado. No Brasil ele era conhecido por "ligue djá", por fazer propaganda de um call center que supostamente te orientaria sobre a vida. O astrólogo foi um dos mais famosos do mundo, tendo orientado presidentes e figuras importantes e também por sempre dizer coisas positivas e deixar as pessoas mais otimistas com a vida. Walter é de Porto Rico, fez muito sucesso nos Estados Unidos e em toda a América Latina. O documentário conta a história de vida de Walter, que experimentou o sucesso extremo e depois levou um golpe enorme. Sem contar spoilers, vale a pena assistir para saber um pouco mais sobre essa figura, mesmo que a história não seja contada em profundidade nem com muita crítica. O tom é leve e good vibes, assim como é Walter. É mais uma celebração dessa figura que um destrinchamento total da história. Disponível na Netflix.
Até a próxima!