Abas Infinitas #3 - Vamos precisar de todo mundo para...
Essa noite sonhei que eu ia trocar 3 mil dólares na casa de câmbio pois estava sem dinheiro, e com medo de sair com muito dinheiro na rua, eu pedia tudo em sashimi. Acho que dá pra analisar o sonho identificando um pouco de medo do futuro (queimando as economias) misturado com a saudade do passado (comer sashimi, que está cada vez mais difícil).
Meu amigo PM compartilhou essa imagem da antiga boate "The Great Brazilian Disaster", de Belo Horizonte. Cobicei o neon, sim. Talvez porque o desastre brasileiro é algo que a gente se apegue. Cada dia as coisas vão desabando e a gente vai se anestesiando com música boa e piadas. O humor do brasileiro é pós-traumático.
Enquanto escrevo esse texto pauso para olhar rapidinho o Twitter e me deparo com a mensagem de Ednaldo Pereira para Jair Bolsonaro. Entendo o povo brasileiro. É difícil levar as coisas a sério (demais). Tá tudo ruim, vamo zuar mesmo. Mas em algum momento vamos precisar encarar nosso país, nosso destino.
Estamos em uma situação única, que a humanidade nunca viveu. Desde a revolução industrial, o mundo engatou uma terceira marcha e acelerou sem parar. Tudo foi se adaptando ao capitalismo e ao consumismo. O coronavírus foi um freio daqueles de manivela, que segurou o mundo à força.
Muito saiu do lugar. Rotinas se dissolveram. Daria para dizer que todos os seres humanos que vivem na Terra sentiram algum efeito do vírus em suas vidas.
Achei interessante uma entrevista que o cineasta Fernando Meirelles deu no início da pandemia, em que ele diz "E se o vírus for o anticorpo do planeta? Li essa pergunta em algum lugar e me pareceu fazer sentido nesse meu momento holístico. Gaia tentando se livrar de um patógeno, nós."
Isso não saiu mais da minha cabeça porque há anos acompanho as discussões para evitar as mudanças climáticas e me lembrei de ver o ano de 2020 sempre como um limite trazido pela ciência. Há anos os cientistas alertam que se até 2020 não fossem reduzidas as emissões de carbono, não conseguiríamos delimitar em até dois graus Celsius o aquecimento da Terra comparado aos níveis pré-industriais. Isso significava ondas de calor duradouras e mortais, o descontrole das pestes e da produção de alimentos, a extinção dos corais, a consequente morte dos peixes, a extinção dos insetos. Se algo não fosse feito até 2020, as consequências seriam assustadoras.
Nada foi feito até 2020. Teve o acordo de Paris, que ia tentar assegurar essa desaceleração do modo de produção, mas ele foi desfeito pelos Estados Unidos após a eleição de Donald Trump. Por aqui, Jair Bolsonaro mudou completamente a política de clima brasileira que havia sido citada como exemplo no passado. Não só isso, liberou geral a devastação das florestas brasileiras. É como se ao observar um princípio de incêndio, os bombeiros saíssem tacando gasolina em tudo.
A vida já estava começando a ficar difícil na Terra quando esse vírus chegou e segurou a ação humana. E mesmo assim, não estamos usando o momento para planejar o futuro.
Será que não é a hora de ouvir a natureza e fazermos mudanças no estilo de vida da humanidade? É claro que isso envolve fóruns maiores que o dessa newsletter, grandes decisões e mudanças, mas o que dá para a gente fazer no nível individual? É o que está em nossas mãos agora.
Uma grande crise climática está por vir e isso influencia a vida humana na Terra. Uma crise econômica se desenha e nossos líderes não são os mais capazes para lidar com isso. O que está em nossas mãos é cobrar por mais justiça. O que está em nossas mãos é não votar em psicopatas, ser resistência quando for possível.
Fechar os olhos e fazer piada é sempre uma forma de lidar com a coisa, mas não pode durar para sempre. De que forma nós podemos decidir por um modo de vida mais sustentável? Quais as mudanças que precisamos fazer caso o pior cenário se confirme? O futuro se desenha assustador e não há para onde fugir. Vamos precisar de todo mundo para resolver isso aí. Quem é que vamos querer que nos represente, que tome as decisões por nós?
Algumas coisas que achei interessante dividir com vocês essa semana:
Tony Bizarro - Estou Livre Original 1983 (link)
Apesar disso, estamos vivos e estamos livres. Eram 4 da manhã numa memorável Virada Cultural em São Paulo e eu estava sentada na mureta entre as duas pistas da Avenida Ipiranga. Nunca mais me senti tão livre. Em alguns minutos o DJ KL Jay ia tocar em uma pracinha perto dali, no "Palco Santa Ifigênia". Ele começou o set mandando essa pedrada. Contagiou a todos os bêbados e mendigos, que naquele momento tiveram uma lufada de ar, um shot de esperança. Eu estava entre eles.
Estou livre
Estou livre
Estou vivo
Vale a pena
Vale a pena
Jerry Seinfeld - artigo: "So You Think New York Is ‘Dead’"
Assim como grande parte da humanidade, eu também me perguntei se eu não devia mudar para um lugar mais sossegado no mundo pós Covid. O que raios a gente está fazendo na cidade grande, se podemos trabalhar de qualquer lugar? Tudo indica que o trabalho remoto fará parte da nossa nova rotina, então por que não mudar para um lugar mais barato, maior, mais silencioso? A resposta é: as grandes cidades são onde os grandes encontros acontecem.
Estamos só sobrevivendo nessa situação de calls intermináveis e dias de trabalho que se confundem com a própria vida. Assim que as interações humanas forem liberadas, elas serão preferíveis na maioria dos casos. É claro que uma empresa pensará duas vezes antes de mandar um executivo pegar um avião para fazer apenas uma reunião presencial, até por motivos de possível recessão econômica generalizada, mas os modelos de trabalho que priorizam interações pessoais humanas sempre serão superiores ao trabalho remoto.
Na vida real, o tempo é outro, a comunicação é outra. A resposta não só é imediata, como é sentida. Na vida real, há espaço para outras conexões humanas além do peso de uma frase gritada (com delay) em uma videoconferência com mais 15 pessoas. Ninguém consegue ser si mesmo em uma videoconferência, ainda mais vendo o próprio rosto o tempo todo.
Na vida real não há "sua internet tá cortando" ou "acho que ele caiu". Há seres humanos fazendo o que os torna seres humanos. Conectando suas ideias e sentimentos.
O comediante Jerry Seinfeld escreveu esse artigo no NYT recentemente comentando um outro artigo publicado no LinkedIn em que a pessoa fala que Nova York não vai se recuperar, que já era, que as pessoas descobriram que podem morar em outro lugar, que tudo está acabado. Alguns trechos interessantes do artigo do Seinfeld:
"There’s some other stupid thing in the article about “bandwidth” and how New York is over because everybody will “remote everything.” Guess what: Everyone hates to do this. Everyone. Hates.
You know why? There’s no energy.
Energy, attitude and personality cannot be “remoted” through even the best fiber optic lines. That’s the whole reason many of us moved to New York in the first place.
(...)
"You ever wonder why Silicon Valley even exists? I have always wondered, why do these people all live and work in that location? They have all this insane technology; why don’t they all just spread out wherever they want to be and connect with their devices? Because it doesn’t work, that’s why."
(...)
"Real, live, inspiring human energy exists when we coagulate together in crazy places like New York City. "
Podcast Progress Through Creativity (link)
Esse podcast é produzido pelo festival Cannes Lions, conhecido por premiar os principais trabalhos de comunicação com foco especial em publicidade. Mas não chega a ser um podcast nichado. Por causa da pandemia, todos os setores tiveram de lidar com circunstâncias extraordinárias para adaptar seus negócios. É interessante ver como líderes de empresas enxergam esse momento e como surgem pequenos shots de esperança enquanto o mundo todo desmonta modelos tradicionais e renova o jeito de fazer negócio. Há diversos episódios interessantes como a entrevista da Bozoma Saint John, recentemente promovida a chefe global do Marketing da Netflix, e Chris Brandt, da rede de fast food mexicano Chipotle, contando como fez para transportar quase toda a operação para o digital, fazendo um bom uso das redes sociais. Um plus desse episódio é aprender a pronunciar o nome da marca Chipotle.
Mas a entrevista que foi mais inspiradora para mim foi a da Jess Greenwood, chefe global do Marketing da agência R/GA. Ela conta como a agência criou um livro para ajudar as marcas a navegarem nesse cenário incerto da pandemia. Esse material já foi atualizado dezena de vezes desde então, o que mostra a rapidez com que o mundo está girando. Ela fala um pouco sobre a necessidade das marcas terem sensibilidade e demonstrar características louváveis como a bondade para guiar as pessoas em tempos difíceis.
Assistir alguém ouvindo uma música pela primeira vez
Foi uma reportagem da New Yorker que me fez conhecer o canal TwinsthenewTrend, um canal onde dois irmãos gêmeos, Tim e Fred Williams, ouvem músicas pela primeira vez. É bonito ver a humildade dos jovens dispostos a ouvir e aprender algo antes de emitir uma opinião (algo difícil de encontrar hoje). Eles geralmente ouvem músicas que a gente já ouviu mil vezes, o que dá um toque quase raro para o vídeo.
Como eles podem nunca ter ouvido Bohemian Rhapsody, do Queen, ou Wannabe, das Spice Girls? Uma possível resposta é que eles têm 21 anos, então qualquer aprendizado sobre o passado precisa ser um esforço pessoal. Eles não viviam na época em que esses hits tocavam no rádio.
Eu particularmente me senti muito emocionada ao assistir o Tim ouvindo Smells Like Teen Spirit do Nirvana pela primeira vez. Me senti novamente com 12 anos, ouvindo essa música no meu quarto, com aparelho nos dentes colocando o CD no meu Micro System Sony. Os vídeos de Creep, do Radiohead, e I Will Always Love You, da Whitney Houston também são imperdíveis. Te desafio a conseguir parar de ver os vídeos desse canal rapidamente.
Horace and Pete - why online dating doesn't work (link)
Eu tenho poucos uploads no You Tube, mas essa cena da série Horace and Pete é um deles. Quando eu assisti a essa série há alguns anos (foi lançada em 2016), achei essa cena muito linda e capturei para compartilhar com mais pessoas. Toda semana recebo um novo comentário e adoro ver as impressões que as pessoas têm sobre esse vídeo.
Nessa cena, uma moça tenta se recuperar após ter um primeiro encontro desastroso. Ela diz que o rapaz parecia ser perfeito, que se conheceram em um aplicativo, que tinham tanto em comum. Na vida real, não deu certo. Ela ouve alguns conselhos sobre por que essa falsa fantasia de encontrar alguém perfeito com base em seus gostos não funciona para relações humanas.
A série lembra um pouco uma peça de teatro. É escrita e estrelada pelo comediante Louis CK (que vive Horace), mas está longe de ser cômica. É um pouco melancólica, dramática às vezes, até experimental. Se passa em um bar decadente em Nova York, que é tocado pelos primos Horace and Pete (este é vivido por Steve Buscemi). Na maior parte das vezes os clientes são "perdedores" que sentam no balcão para beber à tarde. Diálogos memoráveis acontecem, como nessa cena em que o cliente explica a história de Sodoma e Gomorra, esse diálogo sobre sexo com uma mulher trans ou ainda uma ótima discussão entre um liberal e um republicano defendendo sua posição política (a velha briga entre direita vs esquerda).
O primeiro episódio está disponível neste link - assim como a série toda, que você pode baixar por US$ 13.
Newsletter Espiral - Lalai Persson (link)
A Lalai é uma produtora cultural, uma das criadoras do site Chicken or Pasta, e recentemente se mudou para Berlim. Ela tem essa newsletter bem legal que fala sobre a cena musical, a quarentena e sua adaptação à vida nova. Na última edição, ela falou um pouco sobre o fim da quarentena na Alemanha e o que isso bateu nela. O tema principal é a chamada "síndrome de impostora", termo que está no feminino não por acaso. Geralmente essa síndrome atinge as mulheres, que estão sempre se questionando se são boas o suficiente para estarem com o microfone na mão. No geral, os homens não se questionam a esse ponto, aceitam as recompensas do mundo como se merecessem. Perceber a síndrome de impostora é um exercício importante para fugir de suas armadilhas. Veja um trechinho da news:
Pois bem…. quando a quarentena acabou eu entrei em pânico. Eu estava numa bolha confortável, pois de repente eu não precisava mais pensar no futuro e nem no que eu ia fazer no dia seguinte. Os planos tinham sido todos cancelados. Até o dinheiro era menos necessário, porque a gente só gastava com supermercado e as contas da casa.
Sem trabalho, eu mergulhei em um monte de tarefas para disfarçar o tempo livre e me manter ocupada. Os três meses trancafiados em casa voaram de tal forma que não dei conta de metade das coisas que me propus a fazer. Finalmente a porta de casa estava aberta para eu sair e curtir o verão, explorar Berlim e fazer a minha nova vida acontecer. Mas junto com a liberdade, veio a cobrança: E aí, o que você vai fazer? Vai trabalhar com o que? Vai voltar para o alemão? E o inglês, evoluiu? Conseguiu fechar algum projeto? Terminou o curso x que estava fazendo? Está meditando? Vai escalar? E a academia? Tem dinheiro na conta? Mas já está querendo viajar?
Frida Kahlo - Carta a Diego Rivera
Essa foto apareceu no meu Instagram outro dia, mas o que me chamou a atenção mesmo foi a legenda. Na imagem, Frida Kahlo veste um terno e segura uma bengala. O ano é de 1924. Na legenda, o perfil History Cool Kids mostra uma carta que Frida teria escrito a Diego Rivera 30 anos depois, às vésperas de uma cirurgia para amputar uma de suas pernas. Frida é conhecida por ser uma mulher dramática, apaixonada. E nessa carta dá para sentir o medo da cirurgia, os ciúmes que sentia por ele e uma leve tentativa de esconder a paixão latente tentando fingir que não estava nem aí.
"I’m writing this letter from a hospital room before I am admitted into the operating theatre. They want me to hurry, but I am determined to finish writing first, as I don’t want to leave anything unfinished. Especially now that I know what they are up to. They want to hurt my pride by cutting a leg off. When they told me it would be necessary to amputate, the news didn’t affect me the way everybody expected. No, I was already a maimed woman when I lost you, again, for the umpteenth time maybe, and still I survived.
I am not afraid of pain and you know it. It is almost inherent to my being, although I confess that I suffered, and a great deal, when you cheated on me, every time you did it, not just with my sister but with so many other women. How did they let themselves be fooled by you?"
"...Let’s not fool ourselves, Diego, I gave you everything that is humanly possible to offer and we both know that. But still, how the hell do you manage to seduce so many women when you’re such an ugly son of a bitch?"
The reason why I’m writing is not to accuse you of anything more than we’ve already accused each other of in this and however many more bloody lives. It’s because I’m having a leg cut off (damned thing, it got what it wanted in the end). I told you I’ve counted myself as incomplete for a long time, but why the fuck does everybody else need to know about it too? Now my fragmentation will be obvious for everyone to see, for you to see… That’s why I’m telling you before you hear it on the grapevine..."
"...I’m writing to let you know I’m releasing you, I’m amputating you. Be happy and never seek me again. I don’t want to hear from you, I don’t want you to hear from me. If there is anything I’d enjoy before I die, it’d be not having to see your fucking horrible bastard face wandering around my garden.
That is all, I can now go to be chopped up in peace.
Good bye from somebody who is crazy and vehemently in love with you,
Your Frida"
Até a próxima!