#12 Abas Infinitas - Pra ser brasileiro tem que ter habilidade
Cansada de sentir medo e constante raiva das pessoas que postam seus cartões de vacinação verdes nas redes sociais, resolvi ir atrás dos meus direitos. Tinha ouvido falar que a tal da "xepa" da vacina era um sonho possível. Supostamente, depois que o dia acaba no posto de saúde, os funcionários se sentiriam "perdidos" sem saber o que fazer com o frasco de vacina já aberto. Um líquido precioso desses estaria "sobrando" e a única coisa que eu precisava fazer para conseguir me imunizar era fazer um cadastro no posto. Quando a vacina sobrasse, eles me ligariam e eu iria correndo tomar.
Parecia promissor. Fui logo cedo fazer meu cadastro. Perguntei informações para umas três pessoas até chegar na mesa onde se inscreve para a "xepa". A moça escreveu meu nome, idade, endereço e telefone em um pequeno caderno azul pautado.
Pensei que aquele sistema não era nada digitalizado, eu não saberia que lugar estou na fila nem menos teria uma comprovação de que me inscrevi. Mas tudo bem, a própria ideia de entrar numa fila para pegar as sobras da feira, digo, da vacina, é uma confirmação do improviso como o país está lidando com uma doença mortal que está espalhada pelo seu território (e para a qual já existe vacina). O próprio ponto de partida já é torto. Mas se eu conseguisse me imunizar, estava valendo.
Assim que ela terminou de escrever, me olhou por cima dos óculos e falou baixinho: "mas olha, vou te falar, a chance de chamarem é bem pequena". Perguntei por que e ela continuou, quase que em tom de confidência: "vem aqui às 6 da tarde. O posto fecha às 7. Se você estiver aqui e estiver sobrando vacina, eles te dão". Saí me sentindo mais especial que todo mundo. A moça tinha contado para mim o segredo da vacina. Eu desvendei o mapa e agora ninguém podia me segurar.
Passada a euforia, pensei que é assim que as coisas são no Brasil. Primeiro eles são bem incompetentes para fornecer algo super necessário para a sua vida, depois eles te fazem quase degladiar por algo que em tese seria seu "direito" e só depois partimos para a fase em que, ao não conseguir vencer os desafios e as burocracias do sistema, você é praticamente empurrado para recorrer à malandragem.
Sai do posto e vi uma longa fila com um monte de gente com receituários na mão. Basicamente, se você tiver uma receita dizendo que sofre de pressão alta, diabetes e outras doenças, isso seria um passe livre para tomar vacina na frente dos outros. Enquanto isso, estou aguardando "ansiedade" entrar na lista de comorbidades para eu poder me vacinar.
A burocracia extrema cria uma série de especificidades que te faz buscar algum lugar que você se encaixe. Pensei que talvez seria mais fácil conseguir uma receita. Passei mentalmente pela lista de comorbidades para ver se eu poderia minimamente me encaixar. Nada.
Se você é jovem, não tem uma profissão minimamente da área da saúde, nem é cobrador de ônibus, preso ou funcionário do sistema carcerário, mulher grávida ou no puerpério, portador de síndrome de down, trabalhador da educação, da polícia, das forças armadas, portuários, metroviários, e aparentemente hipertenso, a sua vez vai demorar a chegar.
Diante da situação, meus pensamentos variavam entre a auto-piedade e a auto-estima: "eu devia ter direito à vacina, pessoas jovens estão morrendo" até o famoso "por que não, eu também mereço!"
A dica da moça me abriu um portal. De repente eu poderia sonhar com uma vida imunizada, sem necessariamente furar a fila, o que eu considero "um pouco" antiético. "Um pouco" porque é isso, né, se você precisa lutar pela sua vida, você acaba usando os meios de que dispõe. E talvez esteja aí mesmo o ponto de partida de nossa sociedade desigual.
Essa questão da vacina é um prato cheio para discussões éticas. Na hora da vida e da morte, se há uma violência estrutural burocrática, só resta lutar pela sua vida com as armas que você tem. Recentemente, se discutiu se a vacina devia ser vendida para a rede privada (como clínicas de vacinação e empresas que quisessem vacinar seus funcionários). Lembro de ouvir muitas pessoas dizendo que queriam poder pagar pela vacina, que era um absurdo não liberarem para a rede privada.
Onde devemos traçar uma linha para definir qual o papel dos mercados na sociedade democrática para protegermos valores importantes da lógica do dinheiro? O acesso a uma vacina contra uma doença que atinge a humanidade não deveria ser direito de todos? E se o Estado falha, não deveríamos ter outra solução (ou punição) para essa falta que não seja desistir do Estado e tentar tomar conta de nós com nossos próprios recursos? Porque nem todos vão poder lutar da mesma forma. Lutar por um Estado justo, que garanta o básico, não é papel de todos, até dos que têm dinheiro?
Mas enfim, chegou às 6 da tarde e dei um jeito de ir ao posto. Saí confiante de casa, com passo rápido, pensando que estava com um bom pressentimento. "Estou indo lá vacinar, eu vou conseguir, vai ser hoje", eu pensava enquanto me dirigia ao local. No caminho, vejo uma mensagem que um conhecido conseguiu tomar ontem nesse esquema da xepa (que palavra horrível, meu Deus), no posto do bairro dele. Era um bom sinal. Entrei numa fila que tinha umas cinco pessoas, mas havia umas outras 20 esperando em volta. Parecia novamente promissor. "Provavelmente só preciso pegar uma senha e esperar", pensei.
A fila foi crescendo e todos falavam que estavam ali para o mesmo esquema. Quando chegou minha vez, ouvi da enfermeira que o único sistema que funciona é "colocar o nome no caderno", mas que "quase nunca sobra, e quando sobra é uma ou duas", e finalmente que "eles sempre ligam para a próxima pessoa do caderno, então nem adianta ficar aqui".
De nada adiantou todo meu pensamento positivo, apesar de que foi bom acreditar que as coisas podiam dar certo, nem que fosse por alguns minutos. Logo depois, descobri o site "Quando vou ser vacinado?", e aparentemente ainda vai demorar 5 meses e 4 dias para chegar a minha vez de me vacinar.
Post-scriptum: O vírus chegou a mim antes da vacina. Alguns dias depois dessa saga esperançosa pelo país dos sem-vacina, descobri que estou com Covid. A imunização vai acontecer no modo “hard”, mesmo.
O que o dinheiro não compra - Livro de Michael Sandel
Essa discussão sobre deixar o mercado regular coisas importantes como uma vacina me fez lembrar desse livro que li há alguns anos. O autor, Michael Sandel, tem diversos livros sobre Justiça e Direito. Sandel acha que deve haver uma discussão ética sobre onde o mercado pode entrar e onde não deve na sociedade. Ele cita impasses éticos como a venda de ingressos de shows gratuitos por cambistas, a venda de senhas do serviço de saúde, ou lugares na fila para as audiências do Congresso dos EUA (lobistas pagam desempregados para segurarem lugares). Ele discute situações onde se considera dar dinheiro para viciadas em drogas se esterilizarem ou para crianças lerem livros e tirarem notas boas. O autor levanta a questão: se tem alguém querendo pagar e outra pessoa querendo vender, os liberais diriam que o mercado se auto-regula, mas segundo ele, estaríamos dando valores errados ao permitir que o dinheiro entre em todas as esferas da vida. Se o valor de mercado fosse aplicado para tudo seria aceitável as pessoas venderem os filhos (afinal poderia haver alguém que quisesse vender e outro que quisesse comprar) ou até venderem seus órgãos, ou ainda seria comum o pagamento de voluntários para arriscarem suas vidas como cobaias. Sandel diz que fomos de uma economia de mercado para uma sociedade de mercado e, por isso, deve haver uma regulação, algo que impeça que o dinheiro dê valor a coisas que em tese não deviam ser vendidas. Portanto, permitir que uma vacina tão importante como essa seja vendida significa abandonar a esperança de considerar a saúde universal para todos e de que todas as vidas têm o mesmo valor. Sobre esse mesmo tema, vale a pena ler a história da Maria das Graças da Silva, que dorme na fila para marcar exames no SUS em troca de R$ 25.
Joan Didion - The center will not hold - documentário Netflix
Eu conhecia pouco o trabalho da Joan Didion até assistir a esse documentário sobre sua vida, na Netflix. Ela é uma senhora articulada e carismática, mas ao mesmo tempo super discreta. Ela vem de uma família de imigrantes no deserto da Califórnia, mais precisamente Sacramento, e esse passado colaborou para ela se tornar uma pessoa com sensibilidade narrativa, detalhista e observadora. Ela poderia ser considerada integrante do "novo jornalismo", escrevendo artigos quase literários sobre temas contemporâneos da sua época como a cena dos anos 60. Seus textos foram publicados em revistas como Vogue e Esquire, mas conquistou a fama escrevendo livros poderosos como Rastejando até Belém, O álbum branco e O ano do pensamento mágico. O documentário é dirigido por seu sobrinho, o ator Griffin Dunne, que coincidentemente faz o papel de Sylvère em I Love Dick, série que eu indiquei na última Abas Infinitas. Joan Didion encontrou na escrita o seu canal de expressão, e nesse documentário, acompanhamos como ela se apoiou na escrita para passar por momentos difíceis em sua vida.
Retrato Narrado - série do Spotify
Retrato Narrado é uma série de seis episódios de podcast disponíveis no Spotify, produzida pela rádio Novelo da revista Piauí. A repórter Carol Pires, que também fez o roteiro do documentário indicado ao Oscar "Democracia em vertigem", mergulha na história da família Bolsonaro para fazer uma espécie de Retrato Falado, indo às origens da infância dele em Eldorado Paulista e explicando como ele se formou como pessoa e político até chegar aos dias de hoje, na presidência. Por muito tempo eu evitei ler e saber qualquer coisa sobre ele e sua família por causa do asco e da desilusão que sentia sempre que via uma notícia com um desses senhores. Mas a gente precisa saber dialogar, olhar para as coisas e ouvir o diferente, para podermos achar um caminho para sair desse buraco em que nos encontramos. Foi interessante saber mais sobre quem são esses homens e o que eles pensam. A sensação é de que preciso de ainda mais informações. Destaque para o quarto episódio que fala sobre "A construção do mito" e como a internet teve um papel crucial na vitória de Bolsonaro. Essa série de episódios explica bem o que levou esse deputado do baixo-clero a conquistar tantos brasileiros: a desilusão com a política, o conservadorismo arraigado, a vontade de se encontrar uma solução mágica que envolve um "super macho" que é contra "tudo isso que está aí" e está pronto para destruir tudo. Bolsonaro criou várias frentes de ação e várias versões de si mesmo, mas ele nunca escondeu quem ele era. Toda essa energia de destruição e morte criou um político medíocre tanto intelectualmente quanto emocionalmente e "deu match" com uma população mal informada, dominada pela violência, com vontade de soluções extremas para situações extremas. Vale a pena ouvir a série toda. Ainda há um episódio bônus sobre Olavo de Carvalho, feito pela jornalista Letícia Duarte que o entrevistou algumas vezes.
Batalhadores do Brasil - artigo da revista Piauí
Ainda sobre o Bozo, vale a pena ler esse artigo do Miguel Lago na Piauí, que pode ser lido no site. Nesse texto, ele desenha bem como Bolsonaro joga por fora das regras políticas e arrisca a dizer que as chances dele ser reeleito é muito grande, principalmente por conseguir transformar todos os adversários políticos em figuras que geram um cansaço discursivo e também pela enorme capacidade de ser um "presidente-perfil", como ele chama, alguém que entende como ninguém a importância da esfera digital e da repercussão na internet como forma de comunicação principal.
"Bolsonaro é sim, como ele afirma, a nova política. Ele desafia a leitura materialista sobre a qual liberais e sociais-democratas basearam suas disputas nos últimos quarenta anos. Nesse tempo, a política se reduziu à gestão da coisa pública, como se governos fossem síndicos de condomínio. A nova política resgata a verdadeira dimensão do político: uma arena de produção de desejos, de formulação de demandas, de construção de identidades, de ampliação de expectativas, da disputa por visões de mundo. Bolsonaro desafiou o excessivo materialismo dos cientistas políticos, que consideravam sua eleição quase impossível, e desafiou toda a literatura existente sobre responsabilização e performance de governo".
(...)
"O resultado é que, além de delimitar o campo semântico dos adversários, Bolsonaro coloca-se na posição da vítima, de alguém que é perseguido pelos defensores do Iluminismo – algo abstrato e alheio à realidade da população brasileira –, de alguém que é impedido de exercer o bom governo. As instituições, afinal, só existem para constrangê-lo e manietá-lo. Bolsonaro encurrala seus adversários, forçando-os a praticar um discurso elitista e condescendente que se comunica com pouca gente. O que é estado de direito para quem está acostumado com as violências diárias das grandes cidades? O que são racionalidade, evidências científicas para quem tem que levantar todo dia cedo para garantir o sustento da família? O discurso iluminista não gera empatia e afeto, ele afasta a população. Enquanto os opositores estiverem presos a ele, Bolsonaro sabe que será o único a dialogar com os anseios da maioria do eleitorado".
Ten Meter Tower - Op-docs The New York Times
A premissa desse documentário do The New York Times é bem simples. Uma câmera filmando a reação das pessoas em cima de um trampolim de 10 metros. É tão interessante ver o instinto humano cru à sua frente que você não precisa de nenhum roteiro. Está tudo ali: o medo, a barganha, a covardia. Destaque para o diálogo do jovem casal Frida e Linus - tão real e cheio de personalidade, que até parece roteirizado. Em grande parte do filme, não vemos o ponto de vista de quem está lá em cima, nem a perspectiva da altura que eles estão perto de pular. O que importa aqui são as reações humanas frente ao medo e o que isso faz com as pessoas. É isso que torna esse material tão interessante. Um dos comentários do vídeo diz: "Esse é o melhor thriller psicológico que já assisti em décadas. Uma obra-prima". Mil e cem pessoas concordaram e deram like no comentário. Os documentaristas suecos Maximilien Van Aertryck and Axel Danielson falaram um pouco sobre suas intenções ao NYT. Eles colocaram um anúncio online chamando pessoas que nunca haviam estado em um trampolim e pagaram cerca de 30 dólares para as pessoas subirem lá em cima. Não importava se elas iriam pular ou não, elas receberiam o dinheiro de qualquer jeito. Eles estavam interessados na reação, não no resultado. O curta foi exibido no Festival de Sundance em 2017.
"Nosso objetivo ao fazer este filme foi uma espécie de experimento psicológico: procuramos capturar pessoas em situação difícil, para fazer um retrato de humanos em dúvida. Todos nós já vimos atores interpretando a dúvida em filmes de ficção, mas temos poucas imagens verdadeiras desse sentimento em documentários. Para fazê-los, decidimos colocar as pessoas em uma situação poderosa o suficiente para não precisar de nenhuma estrutura narrativa clássica. Um mergulho alto parecia o cenário perfeito".
😭 >>> 😂
Só pode ser reflexo da pandemia: o Emoji Chorando ultrapassou o Emoji "Chorando de Rir", que foi durante anos o mais utilizado no Twitter.
Jup do Bairro - O Corre
Vale a pena conhecer a Jup do Bairro, cantora, compositora, e ex-companheira musical de Linn da Quebrada. Ela também é vencedora do prêmio Multishow na categoria Artista Revelação em 2020. Nessa música, Jup conta um pouco sobre seu "corre", que retoma os tempos de escola, a busca por moedas para comprar refrigerante e batom, a intimidação dos colegas de classe, os beijos com brilho labial e os boletos para pagar. Para ver um pouco mais da sua história, leia aqui. Essa semana, ela lançou mais uma obra de arte: o clipe de Sinfonia do Corpo. Ela escreveu em seu Instagram que essa "talvez seja minha composição mais íntima até aqui, uma viagem ao centro do meu corpo e da minha mente, que muitas vezes não quis acessar".
Até a próxima!