# 33 Abas Infinitas - A improvável capacidade de se desconectar
Recentemente comecei a encarar meu vício em internet de frente, sem fugir. Tudo começou com a leitura da newsletter da Catherine Price, que eu assinava, mas sempre ignorava na caixa de mensagens. Ela tem um livro chamado "Celular: como dar um tempo", que eu estou lendo, mas evitei por muito tempo por medo de me identificar demais.
Demorei para assumir que tenho um problema de vício em Internet, talvez por achar que fosse uma falha minha, mas com o passar do tempo comecei a entender que esse desafio é coletivo. Esses aparelhos são projetados para viciar, e eu não sou exceção.
A Catherine dizia na newsletter algo como: "escrever uma carta terminando com seu telefone será a melhor coisa que você vai fazer hoje". Aquilo me pegou e eu resolvi escrever uma carta que acabou saindo bem profunda, viceral, e até dolorida. Faz apenas 15 anos que tenho smartphone e minha vida mudou completamente por causa desse aparelho. Foi difícil encarar como minha vida mudou desde que a Internet passou a tomar conta de todo o meu tempo acordada.
Passo o dia grudada em meu computador trabalhando e checando notificações de vários lugares diferentes. Quando saio dessa tela, imediatamente já me grudo no celular. Qualquer momento de lazer é intermediado por ele, seja para escutar música, falar com alguém (ou várias pessoas ao mesmo tempo), se informar sobre como chegar a algum lugar, e, claro, registrar tudo com a câmera.
Vivo num estado constante de ansiedade e distração. Perco tempo demais com isso, mas o pior é que perco a minha mente. Não tenho mais memória, nem consigo mais focar em nada por mais de um minuto (imagino que deve haver uma nova condição médica chamada Déficit de Atenção adquirido por causa do celular). Nunca estou presente no mundo físico totalmente, há sempre um gatilho para dar uma olhada no que está acontecendo naquele outro mundo que parece muito mais brilhante, colorido e interessante.
Ao escrever essa carta terminando com meu telefone, parece que se abriu um monte de caminhos dentro de mim. No Carnaval, me senti forte o suficiente para desligar o telefone por alguns dias. E aí veio o estalo. No final de semana, ninguém precisa ter acesso a mim. Se o problema é o trabalho, ou os amigos, no final de semana é OK não responder uma mensagem imediatamente e estar indisponível socialmente (ainda). Foi aí que criei um desafio pessoal: ficar 24 horas offline toda semana (força, guerreira). Desligo o telefone na sexta à noite e só ligo de novo no domingo cedo (porque não teria porque olhar toda a ansiedade acumulada bem no sábado à noite).
Isso me deu ainda mais força para criar um limite durante a semana. Se vou acordar às 8h, desligo o telefone às 20h. Assim fico 12 horas vivendo na realidade offline. Desinstalei o aplicativo do Instagram para não compartilhar mais nada e ter uma experiência horrível de navegação. Fiz várias coisas no sentido de controlar o uso excessivo e isso tem colaborado para eu perceber que preciso abrir espaço para o descanso também.
"Nossos cérebros paleolíticos não foram construídos para a consciência onisciente do sofrimento do mundo. Nossos feeds de notícias online agregam toda a dor e crueldade do mundo, arrastando nossos cérebros para uma espécie de desamparo aprendido", escreveu o diretor do Center for Humane Technology (algo como "Centro pela Tecnologia Humana") Tristan Harris num artigo para o The New York Times.
"Para criar uma tecnologia humana, precisamos pensar profundamente sobre a natureza humana, e isso significa mais do que apenas falar sobre privacidade. Este é um momento espiritual profundo. Precisamos entender nossos pontos fortes naturais - nossa capacidade de autoconsciência e pensamento crítico, para debate e reflexão fundamentados - bem como nossas fraquezas e vulnerabilidades, e as partes de nós mesmos sobre as quais perdemos o controle", conclui Tristan Harris.
Há uma década, Edward O. Wilson, professor de Harvard e considerado o "pai da sociobiologia", disse: “O verdadeiro problema da humanidade é o seguinte: temos instituições medievais, emoções paleolíticas, e tecnologia com poderes divinos.”
Todo mundo está imerso no mesmo sistema, em graus menores ou mais elevados. O que me leva ainda mais a querer escrever sobre isso.
Quem sabe assim consigo resolver esse enigma dentro de mim.
Algumas coisas legais que vi por aí:
Descansando sobre o descanso
Ecoou em mim esse texto sobre o descanso publicado recentemente na newsletter do Eduardo Fernandes.
"A crença na salvação pelo entretenimento foi construída, ao longo do século 20, pra fazer funcionar a Indústria Cultural. Isso nunca foi segredo. A estratégia era colonizar nosso tempo livre e nos fazer trabalhar fora do horário do expediente.
Trabalhar como consumidor de conteúdo e, hoje, também como produtor (além de treinar Inteligência Artificial). O próprio consumo virou um trabalho. No mínimo, gastamos tempo, atenção e produzimos metadados, usados pra publicidade.
"Mulher você precisa descansar!”
"De 0 a 10 quão exausta você tá?" A Lela Brandão começa assim esse podcast sobre descanso. Não conhecia a Lela, e achei bem legal esse formato de uma pessoa falando para uma audiência sem se preocupar com música de fundo ou efeitos sonoros. Ela simplesmente liga o microfone e sai falando. Nesse episódio ela conta sobre sua experiência pessoal de administrar uma empresa (a marca de roupas Lela Brandão Co), junto com sua carreira como influenciadora, e dar conta de tudo (até de administrar a comida do gato). Lela fala de coisas muito reais da vida hoje, como sermos capturados pela rotina de estarmos sempre ocupados com calls que duram o dia todo, e quando isso não acontece, convivemos com a culpa que sentimos por estar fazendo nada… Vale a pena ouvir.
Nação Dopamina (livro)
O livro Nação Dopamina vale para entender como funciona o sistema de recompensa do cérebro. Por mais que a gente busque o prazer, há sempre um contraponto na balança para tornar as emoções equilibradas. E é aí que mora o problema. Buscamos gratificações atrás de gratificações, e o cérebro nos puxa para baixo para equilibrar um pouquinho. Traduzindo a complexidade da neurociência para metáforas fáceis de entender, a Dra. Anna mostra que o caminho para manter a dopamina sob controle é encontrar contentamento nas pequenas coisas e nos conectar com as pessoas queridas.
“Anna Lembke compreende profundamente algo que percebo com frequência nos meus pacientes: a conexão entre os vícios modernos e nosso cérebro primitivo. As histórias das pessoas que ela ajudou a encontrar um equilíbrio saudável entre prazer e dor têm o poder de transformar a nossa vida.”
Depoimento de Lori Gottlieb, autora do best-seller do NY Times "Talvez você deva conversar com alguém” sobre o livro Nação Dopamina.
Artigo sobre uso de smartphones por crianças (The Atlantic)
"Algo deu errado repentina e terrivelmente para os adolescentes no início de 2010. As taxas de depressão e ansiedade nos Estados Unidos – bastante estáveis na década de 2000 – aumentaram mais de 50% em muitos estudos de 2010 a 2019. A taxa de suicídio aumentou 48% para adolescentes de 10 anos. para 19. Para meninas de 10 a 14 anos, aumentou 131%.
O problema não se limitou aos EUA: padrões semelhantes surgiram na mesma altura no Canadá, no Reino Unido, na Austrália, na Nova Zelândia, nos países nórdicos e noutros países. De acordo com uma variedade de medidas e em vários países, os membros da Geração Z (nascidos em e após 1996) sofrem de ansiedade, depressão, automutilação e distúrbios relacionados em níveis mais elevados do que qualquer outra geração para a qual temos dados". Essa reportagem da Atlantic investigou afundo o efeito dos smartphones em crianças e adolescentes e propôs uma solução baseada no que dizem os especialistas: o ideal seria escolas sem celulares, redes sociais só no ensino médio
O artigo foi escrito pelo professor Jonathan Haidt, psicólogo social na NYU Stern School of Business e autor da newsletter After Babel. Ele é coautor de The Coddling of the American Mind e autor de The Anxious Generation: How the Great Rewiring of Childhood Is Causing an Epidemic of Mental Illness. Neste artigo em português, tem mais sobre o livro.
“A Geração Z se tornou a primeira geração na história a passar pela puberdade com um portal no bolso que os afastava das pessoas próximas e os levava para um universo alternativo que era excitante, viciante, instável e inadequado para crianças e adolescentes. A combinação tóxica de superproteção no mundo real e subproteção no mundo virtual deixou-os superansiosos. O tempo gasto em telas e longe de interações pessoais implicou um isolamento indutor de depressão, privou-os de sono, fragmentou sua atenção e os viciou nas doses de dopamina de curtidas, retuítes e comentários", escreveu Jonathan em seu livro “The Anxious Generation".
Torn (documentário disponível no Disney +)
Esse documentário é muito bom e cheio de plot twists. Eu assisti sem saber nada e foi muito melhor do que ler a sinopse. Max Lowe, filho de um dos maiores alpinistas da história e explorador da National Geographic revisita a história da família depois da morte de seu pai Alex Lowe. A morte aconteceu em 1999, durante uma avalanche mortal no Monte Shishapangma. O resto não vou contar pra não estragar a sua experiência, mas vale ver pela história e pelas imagens.
E para não dizer que a Internet é só ruim, um vídeo que me fez rir...
Por hoje é só. Até a próxima!